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De volta à Grécia, nada meditativo, passei a cuidar exclusivamente de mim mesmo. Em Creta o brilho do sol era belo, o azul do céu monocromático era de uma altivez emersoniana, porém eu me sentia um pouco repulsivo, coberto de coisas ásperas para desabafar sobre política e economia. ----- Muito bem, K. (pensava comigo) você fez na Cultura Mundial o mesmo que Schaffner y Marx fizeram nas capas e ternos; o que o General Sarnoff fez nas comunicações; o que Bernard Baruch fez num banco de jardim ------ excedendo discretamente qualquer limitação humana. ---, de fato, na minha miscelânea estavam camuflados estes e muitos outros: Yeats, Apollinaire, Julius Evola, Jung, Heidegger, Morris A. Cohen, Gertrude Stein, Anais Nin, estatísticas de futebol e escândalos sexuais da alta roda. Eu havia colocado Salvador, na Bahia, entre os cretenses e associado Búffalo Bill à Rasputin enquanto lia o noticiário político do Brasil na internet. Desembarcando em Heraklion, nome da antiga Cândia, capital da ilha, logo me impressionou a semelhança desta paisagem com a de Castela: terra parda, pobre em árvores além de oliveiras; calor seco e um certo tom desolado. - Uma tal semelhança (me perguntei) não teria impelido (pareceu-me óbvio) o candiota Domenikos Theotocópulos a instalar-se para sempre na castelhana Toledo (?) ------, na verdade, eu divagava gratuitamente para esquivar-me de responsabilidades apoéticas, mania que havia me valido uma dura repreensão de Daiana: ---- Você fica o tempo todo tranquilo como um rei, enquanto todos os problemas humanos do mundo acontecem(: Não há moscas sobre Jesus (.), K, você é incapaz de se ligar à coordenadas espaço-temporais: à um tempo, aos cristãos, aos judeus, aos muçulmanos (: está sempre no mundo da lua, com suas caraminholas sobre algum tipo de destinação cósmica (: diga-me, que Grande Obra é essa na qual está sempre trabalhando (?) -, mas, com seus lindos cabelos ondulados, suas sutilezas astuciosas, a sutil elegância de dedos de unhas pintadas entrelaçados e pernas cruzadas e seus complicados resmungos filosóficos, ela não era uma inimiga perigosa; não era nem mesmo uma inimiga. Era um amor... mas aquelas guerrinhas de sociedade nada tinham a ver comigo, e eu ainda não havia esquecido todas aquelas coisas pesadas que tinha andado dizendo dos caras da Liga IvT. E até a semana passada ( se não me engano) estava na mesma posição que Tolstói - quando simplesmente esquecera-me de participar da História, para lembrar-me apenas da Comédia Histórica, o pior dos jogos sociais. Realmente, não era uma argumentação usual. Tolstói? Tolstói fora assunto da semana passada. O belo, inteligente e aristocrático rosto de Daiana ficava ora pálido, ora enrubescido por emoções ocultas e suaves perturbações intelectuais. Eu tinha pena de nós dois, por tudo que era nosso, estranhos organismos debaixo do Sol. Grandes espíritos fechados em almas orgulhosas. E almas banidas, ainda por cima, ansiando pelo seu mundo original: a Grécia! Andando pelas ruas batidas de sol de Heraklion, parei no mercado de cerâmica que assegurava a continuação, no tempo e no espaço, de um técnica tão afim à sensibilidade grega. Remonto aqui ao século XVI, quando Veneza dominava a ilha de Creta; nesta mesma paisagem metálica o jovem Domenikos Theotocópulos inseguro caminhava, iniciando sua formação nas igrejas e palácios férteis em ícones. Orientado na direção da oblíqua Bizâncio e seus emblemas, habituara-se a ''deformar'' os modelos naturais, transplantando mais tarde para Toledo esse método que a crítica oitocentista ligou erradamente ao seu suposto estigmatismo. Na realidade, cedo se organizou, na confluência desses dois mundos, a família mitológica de El Greco.
Palácio de Knossos.
O Museu de Heraklion hospeda muitas peças fundamentais da civilização minoense. Os vasos de Creta são superiores aos áticos; retenho entre outros o vaso de argila dito ''Adorador de Haghia Tríada''; o vaso Konassa em forma de pássaro. Algumas dessas cerâmicas, de concepção, forma e desenho insólitos, prenunciam Picasso, Brague, Miró. Convém ligar o museu ao palácio de Knossos, descoberto e restaurado no princípio do século XX pelo arqueólogo Sir Arthur Evans com relativo acerto, apesar de soluções infelizes como as reconstituições das pinturas, a começar pelo célebre ‘’Príncipe dos Lírios’’. Diante da comparação, Daiana disse: Eis o que voce tem a fazer . Vá até o Minotauro e diga: ‘’Sou uma pessoa muito distinta ---- poeta, scholar, crítico, instrutor, mapeador, editor. Tenho renome internacional e já assegurei um lugar na história literária dos Estados Unidos. -----, tudo isto era verdade, diga-se de passagem. Acrescentou depois: ‘’E aqui está sua oportunidade: o mundo literário atual está se decompondo. Já não há uma única visão que escape da epidemia. A equipe de criação do Labirinto está carente. Não contratem Fleischer, contratem a mim, ou só lhes restarão intelectuais de terceira, universitários ----, pensava que Daiana era apenas uma intermediária do Minotauro, mas seus olhos estavam vermelhos e sua testa era feita de listras de ferro. Esteve acordada a noite inteira examinando o resultado das eleições, perambulando pelo quarto e o saguão do hotel. Sei que espécie de pessoas ocupavam o pensamento dela: Walpole, o Conde Mosca, Disraeli, René Char. Enquanto isso, eu meditava com sublimidade intemporal a respeito do tempo e da linguagem, em busca de uma base histórica para as lendas de Minos e do Minotauro. A partir de algumas pesquisas antigas do plano de construção do palácio , como também o vestígio de culturas arcaicas ( a dupla machadinha, os enormes chifres de pedra no jardim da esplanada) era possível acreditar na existência de Diana. O ser humano podia ser nobre, mas ainda era todo feito de argila, e a loucura social frequentemente o tornava engraçado e vil. Sforza, por exemplo, tinha toda minha estima, mas nunca lia nada original; estava sempre fazendo cruzeiros ou esquiando em Sun Valley; sem meus pareceres, teria publicado apenas papel higiênico. Livrei-o de ser um bilionário ignorante. Conseguiu chegar em muitas arestas recônditas do mundo intelectual por meu intermédio. E também a uma pouco conhecida visão de Eliot. ----- Sim --- disse à Daiana --- eu lhe conto tudo: Sforza tem um elevador privativo, ninguém consegue chegar à sua cobertura vindo dos andares inferiores. É visto sempre à distância, quando entra e sai do helicóptero. ---, e, horas mais tarde, eu e Daiana estávamos sentados perto de Sforza naquele helicóptero da Guarda Costeira: Homero assegura que a região da ilha de Creta é rica e bela; indicando-nos ainda que o mar cretense tem a cor da borra do vinho. Mas olhando do alto, preferi deter-me mentalmente no museu e no palácio de Knossos, fontes de contínua magia, e explorar as pegadas de Dédalo, máximo inventor: surpreendendo-o a construir o Labirinto, planejado com tão espantosa precisão. Assim Dédalo abriu também uma vasta galeria de textos, de Homero à James Joyce e à Jorge Luís Borges. Pesquisando os passos fluidos de Ariana (sempre segundo Homero) descobrimos que aqui em Knossos, Dédalo inventou para a princesa um grande espaço dedicado à dança. Outra figura diversa: vestida de uma túnica vermelha, fonte da sua cabeleira-diadema, contaminamos todos de sua estranheza, vejo eclipsar-se naquele corredor ‘’la fille de Minos et de Pasiphaé’’. Claro que procurava situar também Idomeneu, rei de Creta, e sua família: não foram eles reconstituídos pelo mais grego dos compositores, isto é, Mozart, numa ópera fundada sobre a idéia do sacrifício, onde o coro alcança o plano épico da tragédia antiga, onde o Mediterrâneo penetra os poros da partitura, sal e espuma ? Entretanto, neste palácio a presença mais tangível é a do próprio Minotauro que existiu desde o começo do mundo; e temo que, cumprindo seu destino destruidor, elevado hoje à uma dimensão cósmica, subsista até o fim. Seja como for, eu havia feito a jogada audaciosa: obrigara Sforza a combater a tecnocracia e a plutocracia de clássicos em punho; através dele, forçara algumas das pessoas mais poderosas dos Estados Unidos a discutir e rediscutir Platão e Hobbes; obrigara presidentes de companhias aéreas, presidentes de Bolsas de Valores a representar Antígona nas salas de reunião. Neste papel, Sforza tinha sido notável, revelando-se um bom educador. Algo que foi lembrado durante o vôo. Mas Sforza também possuía sonhos ambiciosos e jogava agora com seus recentes conhecimentos de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, depositando uma confiança neles que me pareceu excessiva.
K.M.
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