terça-feira, 25 de junho de 2019

CIRCUNSTÂNCIAS

Como uma mulher da plebe passando na rua com porte de duquesa, seu senso amplificado de ego ilustre em solilóquio. Toda aquela trama engrossando de novo: a certeza fazendo-a bancar a doida sempre que valesse a pena o resguardo do quarto, numa atmosfera típica de teatro. ---- Ah, K, tudo aqui me agrada: relevo, cor, ruído e a própria respiração do quarto. Esses pequenos hotéis que estragam tão logo o proprietário ganhe o suficiente para torna-los parecido com seu sonho anti-séptico. O princípio da novidade no primeiro plano da mente, aqui, cálido platô de doce aconchego e intimidade (.) ----, Joana disse. Sentia-me escorregar por um declive de 48 horas, na caverna fria e solitária onde caíramos. Coveiros enterrariam Hamlet de noite, mas a velocidade da droga impediria sua fixação em palavras. A imagem reformulada de Joana, agora viciada em remédios, tornara-se um tópico potencial de tato sagrado. A loucura em Deus como conhecimento-direto separado de tudo. A vidraça roxa ensolarada, a dois palmos do meu nariz, lembrava-me do jogo de luzes contraditórias que na prática meditávamos. Altar macrobiótico e ocultismo prático, em versos. --- Contar o quê, além disso ? Não sei direito, contar a alguém em particular, ou contar como quem escreve um livro? Agora, liberto desses compromissos de cultura, mídia e política, volto a respirar o ar de museu de tudo, das ruas inabitadas dos encontros entre mentes, onde a abordagem é um confronto com o Eterno Retorno, seus prefácios de conversas noturnas, na voz de K. Houve uma época, certamente, em que esta vida perdeu sua habilidade de se compor (começo da Era Moderna), e tinha agora que ser ''trabalhada'', industrializada, com todos seus receios rotulados ''empiricamente''... e muitos de fato fizeram disso seu objetivo, deslumbrados com as miragens que uma mínima recompensa insinuava. Digamos que, do tempo de Maquiavel ao nosso, essa arranjo tem sido um projeto muito mal orientado, que exige uma luta suja para retificar-se (.) --- ,disse, e acendi o cigarro, lembrando o aeroporto limpo e sonâmbúlico da véspera, onde me despedira das leitoras. Perguntara a elas porque estavam lendo aquilo, que eu havia escrito, e a lucidez da comédia subitamente aumentou o espetáculo. alguém as treinara a ver ídolos, ou sub-celebridades eminentes, como fonte de tiranias alienígenas. O véu ilusório que se usava para prosperar entre a audiência já não era o que costumava ser, estava degradando-se depressa, sob a pressão da empiria técnica, sem uma grande abstração coletiva para servir de motor. A verdade atrás do exato, sua consistência enunciativa específica, sua gama de signos à mostra, auto-cambiantes, PERDERA-SE NA NOITE DOS TEMPOS! ---- Sei que mudei e mudo sempre, Joana, mas daí chamar-me traidor, demente, é histeria; embora não autorizado a radiografar explicitamente o pensamento de Merleau-Ponty, recolho de seu último livro esse aforismo: ' La peinture ne cherce pas le dehors, du mouvement, mais ses chiffres secrets''. Meu exterior é meu interior, também ; a extensão, minha profundidade. O passeio de minhas hecceidades pelas ruas realiza-se, mudo ou eloquente, único no mundo, com a força de uma leitura tradutora, com audiência e taumaturgo inventando a todo instante ''ses chiffres secrets''. É necessário que a Arte sirva para algo, não? Que produza virtù, virtudes, virya, amor à Arte e à Musa, mas também má-consciência, ou consciência da má intenção que as cerca. A Loucura vem e vai, nos impedindo de brilhar em logística e relações públicas, mas mostrando-se o melhor tipo de guarnição, de albergue, em tempos de penúria, contra a crise dos westerns de ingovernabilidade geral. E não estaríamos subestimando a América se pedíssemos, através de um catálogo do Sears Roebuck, um Príncipe tipo K para governa-la. Histórias militares e memórias de guerra na ponta da língua, esperando a provocação do interlocutor. Eu conhecida de cor também Wheeler-Nennett, Chester Wilmot, Liddel Hart e todos os generais de Hittler --- e também Winchell, Earl Wilson, Leonard Lyons e Red Smith; e passava rapidamente dos tablóides ingênuos de economia ao General Hommel, e de Rommel a John Donne e TS Eliot, para nuançar mentiras passageiras entre os painéis das Bolsas de Valores. Às vezes, parecia conhecer fatos estranhos sobre Eliot de que ninguém tinha conhecimento, e usar isso como artifício para fazer a terra tremer. O que não faltava em mim era intriga, alucinações políticas e discórdias literárias(.) ---, disse, minha teoria da distorção desvelava, fundia, era inerente à minha poesia, assim como aos quadris de Joana, em sua louca yoga de versificação. Aquele resto de roupa passando pelos seios nus, deslizando pelas nádegas curvilíneas --- então, pouco solene, o esboço do falo erguido, a nota aguda de sua cintura na corda confusa de nosso Ser. Acordei no dia seguinte entre quatro paredes desconhecidas, com gosto de papéis de música na boca. O tempo estava BOM, o céu claro. Puxei as cortinas, que impediam a visão dos detalhes, e deixei-os entrar. Mais imagens estranhas da noite passada, de restos de súcubos emergindo das primeiras conversas, nos telefonemas de conveniência; e, depois, na praia, no carro. Energia comida pela instalação forânea na linguagem. Advertências como gotas manteiga pingando numa panela enferrujada, formigando o veneno egocêntrico do sangue, ativando uma gosma predatória dentro da coluna. Manchas de energia borbulhavam no ar, saciadas, a alguns centímetros da minha testa, e círculos inorgânicos concêntricos desciam espiraladamente e evaporavam contra meu rosto. Minha metafísica pessoal se metabolizando no ar da manhã, procurando um bar aberto para forçar-se ao mesmo raio de onda vazio e pre-existencial, da noite anterior. No bar, o poema, escrito havia dias, chamava-se CIRCUNSTÂNCIAS, e sua mensagem era clara: ''A imaginação não deve enfraquecer''.  Sentimentalismo, talvez, mas também considerações bioquímicas, advaita-vedantas, nagualistas, políticas e econômicas, em último caso, se re-derramando em minha mente:


CIRCUNSTÂNCIAS

Circunstâncias: garimpo, no Pará.
Pensando na draga motorizada,
coberta de musgo, comendo
arbustos e destroços aquáticos.
Lama de mãos ensanguentadas,
de esteiras de tratores anfíbios.
E um diamante minúsculo, auto-
-diamante, auto-reflexo, no fundo.
O reflexo de cada planta sangrada
na água, e a orelha arrancada de
alguém na balsa, pingando no rio.
Pão seco no bolso da calça, fome.
O negro pijama pagando prostitutas
com cocaína de amuletos, macumba.
E mercúrio envenenando palavras
no ar: AMOR - MERDA - MAMÃE -
ME ENTERRE BEM FUNDO -
e bombas d´ água protegidas
por pneus e sacos de farinha
de embalar pedaços de cadáveres.
Sol sobre poeira vermelha, sobre
fumaça azul. Sol filtrado por
cinzas silenciosas, auto-poiéticas.

KM


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