sábado, 30 de março de 2019

O ESPECTRO

---- Ele consegue manter todas as minhas loucuras como reféns (.) --- Carmen disse para joana, que nos recebeu na entrada da livraria. Olhos fulgurantes de cafezinhos sob a lâmpada azul em curto, no estande, que agora procuravam meu rosto na sombra. Eu ria baixo, um riso de Bolsa de Valores em conluio contra a humanidade. Elas seguiam conversando entre si , sem resposta. ---- Meu mundo permanece fantasmagórico até que sua substância lhe dê corpo, como um sublime fixador. Sem K, nos últimos anos, projetos profissionais, namoros, viagens, etc, me pareciam tão frustrantes quanto alguém que, despencado de uma janela, ao passar pelas janelas dos quartos abaixo, desejasse se tornar íntimo de seus ocupantes (.) --- concluiu Carmen. ---- Comigo era diferente (disse Joana) Quando éramos casados, até as frutas na geladeira pareciam estar amaldiçoadas, enquanto ele meditava no quarto escuro. Sozinha no outro quarto, sentia seu fantasma como um fermento de linhas anatômicas desconhecidas, de mulheres imaginárias tentando se encaixar no meu corpo, numa extensão vigiada e sobrecarregada do ar. ''O que você vê quando olha pra mim?'', perguntei para ele um dia. Ele sorriu e disse: ''Pescoço, mãos, cabelos soltos caídos sobre o rosto, cobrindo a boca, grudado no queixo ou na garganta, numa imóvel solidão''. Ainda sorria ironicamente, ouvindo os ruídos que vinham do apartamento de cima... RUÍDOS DE SALTOS ALTOS! --- ela disse. Carmen sorria com ela, quando dei um passo sincopado para frente. Uma funcionária da livraria, silenciosamente, concertou a lâmpada e entreabriu o estande de lançamentos, nos fazendo um aceno. Rangemos para sair dali, com copos de cerveja na mão. Joana retardou ao máximo nossa partida, com aquele assunto: --- (...) Estalos, gorgolejos, ruídos de cozinha, a voz acumulada de vários movimentos simultâneos, uma panela sendo colocada no fogão, alguém puxando a descarga, vidro esbarrando em vidro, passos sobre o linóleo, enfim, os sons que embalam qualquer apartamento de classe-média, mas reunidos num todo mapeado em tempo integral em sua mente. Eu tinha certeza que o fantasma dele conhecia todos aqueles lares como a palma da mão, e muitos outros longe dali... foi quando comecei a me incomodar com aquelas práticas noturnas dele, que no começo eu pensava serem apenas yoga. 'Se o universo não fosse movido por um mecanismo muito simples (ele disse um dia) acabaria se desconjuntando''. Isso foi antes de começar com os assuntos militares. Em outra oportunidade, perguntei-lhe, à queima-roupa, sobre a Sabrina... então, de um minuto para o outro, meus pensamentos começaram a se dissolver, fiquei tonta, à medida que o coração dele acelerava assustadoramente, a ponto de ser visível. Tudo isso em silêncio, até que -----, nessa parte, tive que interrompê-la e puxá-la pelo braço, levando em conta o risco pessoal na avaliação ética de sua ''versão dos fatos''. Minha resolução, naquele momento, expressava a tenacidade do meu caráter, e o remorso por aquela sutil ''infidelidade proto-conjugal'', na qual levava minha ''proto-esposa'' a não ser a única, ali, em condições de apresentar meu ser e meus pensamentos. Carmen tinha uma pronúncia tão doce que, ouvindo Joana, era impossível não desejar substituir uma pela outra. Sob as tiranias discursivas de Joana, emergia em mim certa debilidade de raciocínio, típica de um pirata que prefere atear fogo ao paiol que entregar o navio... Além do mais, era eu o autor do livro a ser lançado ali, e cabia a mim agora personificar o zelo por aquele prodígio. Combatendo as formas sub-reptícias de expressionismo que surdiam a todo instante na televisão moderna, minha obra agora atingia uma espécie de estado de rarefação: ---- Pois o INDEFINIDO (eu dizia a um grupo de velhinhos que entrara por engano na livraria e se aproximara do estande de vendas em busca de informação) é uma PRENSA que se esmaga a si mesma até fazer sair de seu próprio sangue todos os monstros do INFINITO, não como estados, mas como seres reais (.) ----, assim , eu começara a aspirar ao céu da ''aderência noturna'', naquela livraria, à medida que ela foi se enchendo de gente desconhecida. A aderência noturna, que colocava a meditação no lugar da droga, era o Cachorro de Três Cabeças, a jóia da panacéia universal. E de fato, havia naquele novo livro uma delicada segurança na escolha do material filtrado com minúcia. Havia incorporado nele inclusive elementos inorgânicos. Linhas sorridentes e linhas graves, perigosas, como dizia Jean Arp, a respeito de suas esculturas. Linhas de insubmissão total à esquemas teóricos rígidos e aspirações humanas ditas '' éticas e saudáveis'', e daí seu nome, ''KUNDATIGUADOR'', no qual eu vampirizava mais uma vez as Flores do Mal, de Charles Baudelaire, em busca de um significado político para a questão espiritual. Carmen esticou toda sua orelha adolescente, quando me ouviu citar o vate: ---- Baudelaire foi enrugando ao longo do tempo, mas conservou uma estranha juventude. Já cada verso de Mallarmé, desde o nascimento, é uma bela ruga fina, estudiosa, nobre, profunda. No mundo das pequenas guerras cotidianas da vida atual, da vida social e política, meu livro os acrescenta aos Onze de Cranly, verdadeiros homens de Wicklow, para libertar a Terra de suas críticas hipócritas e heresias esotéricas; e tbm contra toda essa fragmentação virtual da guerra que, somadas, constituem a GUERRA TOTAL. Por meio do poder plástico de captação das forças do MAL, procuro apresentar à leitora a luta interminável de libertação do homem de seu Carma tenebroso, de seu pé frio, de suas tendências massificantes para a falsificação e o rebaixamento do espírito, que tanta dor e tribulação lhe acarreta, errando uma obra que é, em sua essência, a obra de um grande civilizador. Esse livro, senhoras e senhores, trata antes de tudo da USURA no organismo dos governos, desde o nascimento da civilização ocidental na Grécia, até o presente, e do efeito destrutivo da lógica financista nos Estados Unidos e na China (.) ----, falando assim, eu sentia o fato político surgir sob meus pés (um estrangeiro na minha própria pátria, conversando com um espelho habitado por desconhecidos). Era-me difícil saber o que Carmen conversava ao meu lado, enquanto Joana enchia meu copo com alguma coisa vermelha. Diamante talhado visando um arrombamento de carne morta, meus olhos serviam apenas para cortar o vidro do espelho, transformando-o numa vitrine. ---- Nada mais triste que o diário de Jules Renard, nada demonstra melhor o horror das Letras. Ele deve ter pensado consigo mesmo: ''todos são tão baixos, reles, arrivistas. Ninguém ousa confessar. EU VOU CONFESSAR ISSO E SEREI O ÚNICO!'' ---- Carmen disse, inopinadamente, resultando num incômodo considerável à nossa volta. Eu ria. ---- Sinto que você, K (continuou ela) precisaria mais do que isso para compor seu Hamlet. Precisaria ainda criar uma figura que o mundo colocaria ao lado de Hamlet (.) ----, então, um velho ao lado dela disse: --- Temos aqui um novo Shakespeare? ---- , mas antes que aquilo se transformasse numa conversa, eu observei: ---- A gente larga esse breviário de homem de letras, de arrivista íntegro, depois mal sabe o que fazer. A arte serve apenas para nos revelar idéias novas, algo que as outras disciplinas não conseguem, nem a ciência. E é só isso, essências espirituais informes, cuja profundidade incômoda nos arranca, a contra-gosto, da Matrix (.) -----, mas minha voz, naquele momento , soava como o esboço de um centro estável e calmante, estabilizador, convincente, no seio do caos. E acontecia do meu pensamento correr ao mesmo tempo que se materializava na voz; então, ela tbm acelerava ou diminuía o passo, tornava-se um atalho entre um e outro fragmento de conversa, através do qual a audiência fugia para algo mais elevado que o entorno. Saltava do caos para um começo de ordem no caos, e arriscando perder-me, sempre encontrava o fio de Ariadne que os outros haviam perdido. Fio de linhas entrelaçadas: linhas motoras, gestuais e sonoras, que marcavam o percurso da clarividência, enxertando-se ou pondo-se a germinar ''linhas de errância'' órficas, com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes a cada intervalo. ---- Sou aquilo que está diante de mim. Minha identidade pública tornou-se o SPEAKER N 1, o personagem que fala na televisão, dos quais os âncoras e repórteres são apenas pálidas marionetes submetidas, descartáveis e sem graça (.) ----, como Bakthin, diria que meu ritornelo era complexo, naquele momento. Complexo no sentido de : não convincente de imediato, não apoiado em elementos de forma, de matérias, de notícias, de significação ordinária, mas no destaque de um leitmotiv existencial se instaurando como ''atrator'' no seio do caos sensível e significacional da televisão.Havia uma enorme dentro daquela livraria, e Joana acabara de liga-la no noticiário. ----- Paso cadenzato! Ora de mettersi in marcia; raggiunsero il rrifugio dopo una marcia di tre ore (.) ----, eu disse, e todos olharam para a tela. ENTR'ÁCTE SEMPRE DRITTO. ''Um quadro de K., transformado em notícia pela tv, era a voz de K (eu pensava); a audiência subia na hora ! Fundada na oposição dos recortes e linhas mestras que vão seguindo em zigue-zague, dentro da confusão editorial dos apresentadores; linhas emigrantes em sentido horizontal, esquema inspirado talvez no vôo dos pássaros. As cores conquistadas com esses movimentos miméticos do jornal ganhavam força, à medida que se resignavam à autoridade espiritual omnipresente do K. único e manifestavam os contrastes complementares da LUZ; cores que se ajustavam à uma semântica livre e magnética. O texto de K. acavalava-se na notícia, e na expressão ansiosa e insegura da apresentadora, tudo se interpenetrava, quase chegando a anular-se nos maus momentos de nervosismo, quando o excesso de força da minha personalidade forçava uma ruptura de todos os limites, e a pessoa na bancado do jornal sucumbia à catástrofe dos próprios nervos, erigindo imediatamente aqueles pequenos significados obscuros, tão temidos pela mídia americana, em autêntica doutrina de poder. E vivíamos numa época em que eu já não me prestava ao trabalho de seguir ''aquilo'', tamanha era a dominação do meu espectro no meio jornalístico mundial. Deixava a outros, menores, aprendizes, corruptelas insatisfatórias, explorarem o labirinto daquele NADA SEM ATRATIVOS. Quando o grande artista decidia planificar o Desconhecido , o Indeterminado, o Invisível, tornando-o acessível à pessoas comuns, instalava-se o drama subjacente, e até mesmo os elementos negativos de minhas composições serviam ao desígnio de reconciliar densidade e fluidez. Sem mim, a decadência do mecanismo era flagrante. Claro, gestos retóricos, estúpidos e demagógicos, frequentemente ameaçavam a pureza inicial daquela simbiose; K. , o pintor, finamente arrabiatto aplicava seu termômetro àqueles quadros, sempre que se colocava diante da tela: imediatamente, a temperatura do noticiário oscilava, a Bolsa de Valores subia ou descia, coisas estranhas aconteciam no meio da rua, nos sets de reportagem ao vivo, nos centros de decisão política e econômica do mundo ---- uma espécie de hospício era acionado em tempo real assim que meus olhos pousavam na tela da TV. Uma gama serial de signos insuspeitados, súbito, ficava inteiramente à mostra. Com um movimento mínimo dos olhos, pois, eu os cambiava à vontade, e de acordo com meu humor , reduzia a realidade à um joguete ridículo ou aumentava-a tanto que, de um momento para o outro, todos os telespectadores sentiam que estavam presenciando o Dia do Juízo. Para eludir toda possibilidade de uma agressão figurativa, minha linguagem telepática inventava divindades momentâneas, que eu descartava depois, parodiando os maiores tipos humanos da História. Inflava egos desmesuradamente e logo depois os estourava com uma simples picada de alfinete. Formava retículas, desdobrava linhas preguiçosas, enguiçadas, nos cérebros dos âncoras e repórteres, e instalava urgências nada ortodoxas, que por vontade própria prefeririam seguir uma linha sonolenta, com endereço pré-definido no marasmo. A linha (eu pensava) está entre as pontas, não cerca um contorno, como no mal jornalismo americano. Por isso, eu não pintava a realidade, ou as coisas, mas ''entre elas''. Quando minha mão disparava seus pincéis mentais, até os próprios ritmos ambíguos da realidade cooperavam para restabelecer uma dimensão estilística superior. Nascido temporariamente da idéia fragmentada, e da pronta organização do acaso, qualquer jornal que eu assistisse tornava-se obra exclusivamente minha, ajustadas então ao poder da consciência e do signo. RETORNO ENTÃO AO ESTANDE DE LIVROS. Cansado daquelas criações minhas que empilhei ali para velar meu verdadeiro rastro. Mas como a perda se tornou meu maior ganho, passo para a Eternidade como uma persona (máscara) não diminuída ou sequer quantificável, dada a ausência de termos comparativos. Eu o fantasma, o espectro, uma sombra agora... o vento junto aos rochedos de Elsinore, a voz do mar. Meu rosto tornara-se irreverente, avançando jovial na policromia do ambiente em direção ao sorriso bêbado de Joana. Houve um momento bem legal, em que fiquei olhando para ela com uma expressão de fascínio absoluto, e seu rosto se encheu de simpáticas recordações, detectando em mim alguma sensação residual do passado: --- Continue (ela disse) adoro ouvir voce falando de si mesmo como um vertebrado gasoso. Existe alguma maneira de se mergulhar no Espectro? Hamlet ou Macbeth, com um fraco por assado de bruxa. A invencível armadilha do Espectro é sua chacota em Trabalho de Amor Perdido. Seus quadros, realmente, quadros vivos, navegam ventrudos, prenhes numa interminável maré de entusiasmo espectral. Estamos nos saindo bem com isso: Seu Espectro parece saber que somos fisicamente indivíduos, e nos poupa do congelamento geral, inorgânico (.) ----, enquanto Joana falava, Carmen ria. Carmen, a fidelidade orgânica. Fiel a um tipo: o Buddha e sua noiva, umidade de LUZ, nascido de alma infusa, no plano búdico. Não dei de ombros: ---- Definições apunhalantes. Correntes de tendência, ver onde vai dar... através de espaços menores que os glóbulos vermelhos do sangue humano, todos rastejam rente às nádegas de William Blake, para a Eternidade da qual esta realidade é apenas uma sombra (.) ---, eu disse. Em todo caso, mesmo se não existisse a atração romanesca desse conhecimento de uma riqueza bem maior de planos desvelados um após o outro, ainda assim, debaixo dos ''soportales'' agrupar-se-ia, como micróbios, minha audiência na audiência do jornal, para realizarmos, segundo Ortega y Gasset: ''La operación en que maior delícia encuentra nuestro pueblo y en que emplea maior energía: HABLAR!'' --- Um dia (Carmen disse) ainda havemos de utilizar sem perigo as substâncias que nos acalmam, um dadaísmo tóxico, evitando o vício e rindo do lobisomem da droga. Então, isso será considerado (legalmente) ocupar-se de algo além da vida e da morte () ----, a paciência da papoula, relendo, minutos depois, aquele maravilhoso poema em prosa de Mallarmé ---- Aquele sobre Hamlet (insisti com Carmen ) ele diz: ''Il se prómene, lisant au livre de luimême''. NÃO SABE, LENDO O LIVRO DE SI MESMO. Hamlet sendo levado numa província francesa, um carrasco da alma como o chama Robert Greene... então, você dirá novamente: ''eles vão continuar insistindo que seu Hamlet é apenas mais uma história de fantasmas'' (.) ----, era por isso, pensei, que mais uma vez, ditas tais coisas, sentimos grande alívio por não sermos compreendidos, e passamos a olhar tudo dentro de uma esfera cada vez mais rara, e mais cara, e mais restrita, que ultrapassa de longe nossos anseios por ''entendimento e cooperação''. E olha que Carmen nada sabia de Rilke. Nada sabia de nada, a garotinha esperta. ---- Quando tudo se passa naturalmente com você, as coisas são ainda mais estranhas(.) ---- , ela disse pra mim. O processo de sofisticação telepática demorou um pouco, mas agora já estava implantado ali. Eu era realmente um fantasma, privilégio de visões e audições superiores, apartadas do vulgo, que podiam ser compartilhadas com o mundo ou não. ---- E o que é um fantasma? --- me perguntou ela, lendo meus pensamentos. ---- Vibrante energia inorgânica, ubiquidade; mas, afinal, alguém que gradualmente desapareceu em impalpabilidade gasosa através da morte iniciática, da ausência e da mudança de hábitos, para ganhar o prêmio mais alto da condição humana, que não direi o que é. Meditando sobre os golpes da história, a cultura travestida através dos séculos, a própria metamorfose do espaço. A ''normalidade'', sob a luz do delírio, a lógica tecnicista, usurária, um ''pas de deux'' em direção ao caos, para tentar circunscrever uma subjetividade longe dos equilíbrios dominantes, que mortificam o sistema nervoso, para captar suas linhas virtuais de singularidade, de emergência em outros planos e constante renovação. No mínimo, fantasma originário de uma modernidade incessante, posta em questão e sem esperança de remissão: A loucura cercada em sua estranheza, estigmatizada para sempre em uma alteridade, não deixa de habitar nossa apreensão comum, sem qualidade, do mundo. Mas seria necessário ir ainda mais longe: a vertigem caótica, que encontra uma de suas expressões privilegiadas na loucura, é constitutiva da intencionalidade fundadora da relação sujeito-objeto; logo, integra sua capacidade de metamorfose, de dicotomia terrestre-transcendente. ----, concluí. Meu Deus, como a gente é vulnerável à irritação dos outros, ao acordar desses sonhos em que a MORTE É A APOTEOSE. Mesmo o público mais atento à mim, na fila de autógrafos, cochichava nervosamente naquele momento, procurando formas e cores com as quais se defender da COISA. Assim, ainda conversando com Carmen, eu perdia trechos indispensáveis de nosso diálogo. Cor local: trabalhando com tudo quanto sabia, tornava-me cúmplice dela por telepatia, afetando os preceitos orgulhosamente humildes de um esnobismo evangélico. Composição do lugar: Shakespeare, que estudou Hamlet em todos os seus anos de vida que não foram de vaidade, a fim de representar o papel de Espectro. ---- Você está aí, K (?) -- ela perguntou de repente --- Ó, sim... eu tbm devo falar a grande língua antiga, com essa gente: ''Com essas luvas atravessareis os espelhos como água'', recitei , e de repente veio um estrondo terrível do fundo da livraria. do grande espelho ao lado do estande principal só restou a moldura. O espelho, pulverizado, se espalhou totalmente no chão, enquanto uma mulher desconhecida enxugava o sangue de um dos braços.

K.M.

quarta-feira, 27 de março de 2019

DESGASTANDO-SE PERIGOSAMENTE, Segundo o Hexagrama 23 (PO), do I Ching

O Adepto deve permanecer firme enquanto 
tudo o mais soçobra a sua volta. Ter aonde ir
não é conveniente. A Linha Obscura, feita
de notícias e telegramas, está prestes
a galgar o cume e provocar a queda
da Linha Firme. Nenhum navio chega
nem parte. Apenas telegramas:
frios, duros, sem zona de conforto.
O Obscuro arranca o couro, solapa
sem lutar, e em sua ação dissimulada
na CASA, corrói lentamente suas bases.
As linhas desse hexagrama sombrio
representam uma casa que vai cair.
ZHÍ: Eles, esses, aqueles. XIAO:
dispersar. A CASA é pequena,
mas tem muitas notícias. No escuro,
todas parecem muito ruins, e
uma urgência enigmática paralisa
até mesmo os apelos do silêncio.
Extremos da relação YIN-YANG.
Contratempos ainda não superados.
O sábio torna-se dócil e evasivo, pois
a Linha Superior é o telhado, que desabará.
O PODER YIN AVANÇA! DESINTEGRAÇÃO.
Irmãos sombrios se agitam em códigos
na superfície das coisas raivosas: ''Eles''
estão agora chamando a América, e
interceptando seus telegramas e,
sob tais circunstâncias, tentando
empreender alguma coisa. INFORTÚNIO!
O Sábio reconhece a necessidade da perda
e cala diante de toda queixa: ''Não compreendemos''
(dizem) ''Isso é muito difícil, demanda
'muita experiência; além do mais,
você escreve tanto, e tão sem suspiros,
que ignoramos a natureza de seu mapa''.
Aumento e diminuição, plenitude e vazio...
nem todos sabem lidar com isso. Assim,
aos superiores só resta garantir
suas posições, mediante dádivas.
Inútil chamar os inferiores num canto:
a simples tentativa dispersa a amizade
nos momentos de timidez da conversa.
É preciso embalar os presentes com fitas vistosas!
A montanha afunda na terra, desgastando-se.
Por excesso de enfeites, a influência
da Rainha se esgota, agitando o circo.
Submeter-se, evitando a reação do ego,
pode pacificar o lar, relativamente.
Mas muitos nomes gravam-se
num fundo cinza e tempestuoso:
chineses, índios, negros, mexicanos,
turcos, russos, ingleses-venezuelanos e
''uruguaios'', todos pedem para ser felizes,
enquanto passos urgentes ressoam na América.
Seis na primeira posição: O estrago temido
já foi feito, a cama se desintegra e
os perseverantes são destruídos.
INFORTÚNIO. É simples conversar
à noite na América , mas o distinto
mover dos lábios dos moribundos
indica que as palavras principais
hesitam em ser ditas. Dentes cerrados
na alma entreaberta: os inferiores
avançam, sorrateiros, trabalhando
com intrigas destrutivas. A situação
é quase desastrosa, e manter o
ponto de vista pessoal levará à ruína.
O YANG ENTRA NA SOMBRA, O YIN
NA LUZ. ZHÌ: O home de bem ''causa'',
mas sem resultar em nada concreto.
Não te exaltes, ó home de bem!
As mãos duras, de quando tudo
ainda era rio, e só o primeiro cão
cheiravao o futuro, romperão todas
essas malditas ligações, sem culpa.
Mas a forma disso custa a consubstanciar-se.
Buscai a forma. Elegei o semblante
que pesa o mundo na própria solidão,
soberano de todo esforço de morte.
O Sábio se salva, o inferior, se perde.
A maioria apenas apresenta certa ignorância,
e uma sonolência destrutiva persiste.
Por Deus, e há tantas cidades no mapa!
O que fazer com elas, agora que
''restam apenas soldados passando na ponte?''
O Sábio procura ver tudo do alto:
a pequena fábrica encolhida, as lojas
nem abertas nem fechadas, e os animais
confusos vagando no deserto.
Favor não comer-lhes os retratos!
E não proclamar-se Demônio no rádio,
ao som de tiros. Contempla o jornal
calmamente, enquanto o sentimento
de amplidão e de morte liquida
milhões de corpos em suas casas,
com a iara vulcânica da Broadway
levando seu amor vacilante
da feira mundial de notícias
para as Bolsas de Valores, com um
estertor pálido, implorando
favores secretos às damas do palácio.
Nove na sexta posição significa:
UM GRANDE FRUTO AINDA 
NÃO FOI COMIDO. No entanto,
nenhum desejo de ajudar.
e nenhuma culpa. O desencanto 
de todas as coisas. Apenas
pressentimentos, ânsias e
notícias borbulhando palavras
no silêncio de homens judiciosos,
que dominam seus sorrisos
com incrível facilidade, diante da lei.

K.M.

segunda-feira, 25 de março de 2019

TEMPORAL

---- Bobagem (Carmen disse) Eles vão continuar insisitndo que seu Hamlet é apenas mais uma história de fantasmas. Não perceberão que tinham ao alcance dos dedos um estilista, que pintava de memória as notícias sem parecer um simples copiador da realidade. Mimesis: onde termina a fronteira entre a realidade e a supra-realidade dos arquétipos? ----, a verdadeira confissão, algumas das minhas associações recentes feitas sob o efeito da ganja. Como acontece com alguns escritores, eu vinha escrevendo meu último livro sob o efeito da maconha. Tratava-se de altamirar as notícias, altamirando-se e altamirando-a, a Carmen. ''L´altra (pensava) vive de suo proprio volo.. .secondo i filosofi: un sole che inserisco nel mio libro''. Mas no fundo da minha sibilina indecisão, em Itacaré, a erva vinha me dando um sentimento de algo novo mais ou menos no momento que achava que já havia escrito de tudo. O ato de largar o Livro Inacabado tinha sido uma coragem deslocada, algo que faria de mim o tipo de figura cômica que eu teria explorado à perfeição na Escola da Suspeita. ---- Pensando bem (ela continuou) Nunca houve realmente nada para ser dito. O velho atavismo que nos acorrenta ao homem da turba, e no refluxo de sua Doxa (psicanálise, marxismo, a democracia e seus contratos) E da lógica Outside In e Inside Out em cada categoria de produtos e serviços. Sociedade de Controle pós-atômica e suas ferramentos de precificação. Cost Plus com mark-up ou Competition Based com gap de posicionamento? Na verdade (queiram ou não). foi William Burroughs quem iniciou a análise dessa situação, apenas não dominava a ciência política a ponto de estender suas conclusões para o Sistema Financeiro. A pirataria, o rapto, o plágio e os vírus substituíram as greves e o que no século XIX, segundo Deleuze, se chamava de sabotagem (o tamanco -- SABOT -- emperrando a máquina). Organizações transversais de indivíduos livres... JUDAS... Já pensou nisso? Ou preferiria ficar dormindo? Talvez precise admitir que não é tão adorado quanto pensa, que seu público leitor é ainda mais discreto que você(.) ---- Concordei em silêncio, e ela prosseguiu: ----Sua adorável América, que criticamos há anos, é na verdade um monopólio holográfico que produz efeitos reais, e faz coisas reais com a vida e a obra das pessoas, não só com os personagens dos seus livros (.) ----, de fato, ela me fazia pensar a contra-gosto, quando chegava inspirada numa daquelas pousadas em que eu me exilava, em Itacaré, indiferente aos alarmes e pânicos que me assaltavam na capital. ---- Ora, não jogue ovos podres só porque não consegue entender. Logo logo, voce vai querer entender tudo, até as coisas desagradáveis. Vai querer aceitar mais e mais, até mesmo o que lhe parece hostil. Atravessará vacúolos cintilantes de solidão e silêncio, fora do tempo e do espaço, a partir dos quais, finalmente, terá um grande anúncio a fazer ao jornal, algo parecido com Deus. Dinâmica de um modelo de resposta automática aos Mercados. O regime dos best-sellers tornou-se a alta-rotatividade, que começou com as redes de fast-food nas praças de alimentação dos shoppings, onde deve-se comer rápido e ceder o lugar, e logo invadiu as livrarias, todas elas hoje tbm sediadas nos shoppings. As livrarias viraram lojas de discos e books de modelos com capa dura, que só vendem produtos repertoriados por um top-club industrializado ou hit-parede de enlatados altamente vendáveis, de onde emerge um Inconsciente bombardeado pela mídia e a propaganda. Fora isso, há apenas manuais técnicos e café expresso no guichê. Assim, a literatura tornou-se o excremento do cinema e do jornal, por não haver mais nenhum lugar ''fora do sistema''. A alta-rotatividade constitui necessariamente um Mercado do Esperado: come-se rápido para defecar logo, eis a fórmula do que chama de romance no século XXI. Poderia ainda argumentar que, para um publicitário (críticos e editores, todos o são) não é fácil admitir que a publicidade seja uma ocupação desonesta, feita de panelinhas de marcas hediondas. As modas, as manias, os rostos em cartaz, são como os burocratas da crítica vendida: não admitem mais a noção literária do grande escritor como um estremecedor de paisagens. Mesmo o audacioso, o escandaloso, o estranho, etc, são previamente moldados pelo mercado do ''papel higiênico''. As condições de criação literária, que só podem se liberar no INESPERADO, na rotação lenta e na difusão progressiva do entendimento (com ''passo de paloma'', como dizia Nietzsche) SÃO FRÁGEIS. Surge desse penúria então um romance padrão monstruoso, folhetinesco, ruim, de fácil digestão, feito como uma imitação rápida de Balzac, Stendhal, Céline, pouco importa. Ou melhor, todos estes são inimitáveis. Céline é inimitável! Faulkner é inimitável! Eu sou inimitável! E são todas elas sintaxes ''inesperadas'' e ''a-históricas'', mergulhadas numa vastam nuvem a-histórica, do qual o presente imediato é apenas DEVIR, o modo da intransitividade trans-histórica, uma participação anti-natural (contre-nature) entre o homem e a natureza, entre o mundo e o seu ABERTO. Esse DEVIR é como uma simbiose, um movimento espontâneo de captura, conexão transversal entre heterogêneos. Aliança e contiguidade absoluta. O DEVIR é o outro lado do espelho da produção (nossa homenagem a Baudrillard): o inverso de uma identidade, ou uma identidade ao contrário, para recordar a palavra Tupinambá para INIMIGO. Vide: ALIANÇA DEMONÍACA. Não estamos aqui nem no elemento místico=serial do sacrifício, nem no elemento mítico-estrutural do totemismo, m as no elemento místico-real do DEVIR (.) ----, eu disse, buscando acrescentar, para o dia seguinte, em que viajaríamos, a imagem da própria Carmen, grandiosa entre seus papéis soltos, dirigindo-me um sorriso de endereço extraviado. Sem saber como, eu a colocava ao lado das idéias romanescas que me possuíam há meses, liberadas nas minhas anotações pela separação prolongada de Beatriz e Joana: a idéia ainda central de uma vida em comum com uma mulher. Muitas milhares de cartas e documentos que eu exumei do sotão e guardei nos Arquivos de Baton Rouge. Que histórias! E também o próprio sótão ---- aquela sala enorme no terceiro andar com 40 arcas! Quarenta arcas com o pelame da cobertura de pele de urso intacta. Continham enormes caixas de chapéus dos anos 1850, um estereoscópio de mogno e fotos tiradas nos anos 1860, floretes de esgrima, estojos de espingardas, um velho telescópio, antigos silhões femininos, cestas para gatos, lonas para danças dotadas de argolas para encaixar por cima dos tapetes da saleta, banjos, violões, cítares. Num espaço de colgaduras e tapeçarias de séculos extintos, magnificamente dispostos segundo o gosto espanhol do ''EMPAQUE'', oito armaduras de reis e príncipes que detinham em suas mãos o governo oculto do mundo. ---- Em vão (comentei com Carmen) eu faria soar fantasmas e clarins para atiçar os ânimos, se é do que me acusam. As armaduras simplesmente não se movem dali, satisfeitas da posição em que seus mestres as deixaram, na paz mensurável das planícies florentinas ou holandesas (.) -----, e certo é que havia ali também a lança de Mallarmé, mas em vão, já que, tendo expelido para sempre os inúteis despojos acessórios, havíamos todos ingressado num campo vibratório luminoso do FUNKELIN DER SALE, onde não podíamos mais ser governados por ninguém! Pessoas de todos os tipos tinham ido trabalhar no NEWS, por falta de opção --- de jovens turcos que queriam partir o mundo ao meio e começar tudo de novo, à lindas modelos andróginas, impossíveis de serem imaginadas gemendo, até velhos repórteres cansados da vida nas ruas, ansiando por um trago, desejando apenas uma chance para terminar seus dias em paz. Havia de tudo: restava saber apenas se aquelas novas ansiedades narrativas neles realmente conseguiriam ''intentar'' o FUTURO ou capitulariam na prisão perpétua do comentário, com sátiras pouco originais sobre o ''estado de coisas''. Na melhor das hipóteses, não era possível confiar neles e, quando estavam nos dias ruins, não passavam de apostadores, blefadores e atravessadores de notícias. E não podíamos dizer que todos tinham sido atingidos por igual por minha narrativa até o momento. Apenas Carmen, aquela criança crescida, aparecia flutuando na minha direção com propósitos de pensamento crítico, com a mesma qualidade das imagens de outras mulheres bonitas, o que aos poucos culminou numa associação definitiva. ''Ótimo (pensava eu ) assim eu continuo no centro da história. Qualquer que seja o modo como as coisas aconteçam, a antecedência clarividente com que é narrada a história torna grave a disposição dos jogadores; assim como, para Joana, tudo começara quando ela aceitara romper o silêncio em favor de Sabrina, tornando-a uma personagem exitosa e preponderante, não pela minha monstruosa paixão adolescente, mas por torná-la possível, e tendo-a escrito com afinco, deixando-a passar da pura impossibilidade do silêncio à verdade escandalosa de sua realização no mundo, e no mundo do jornal. --- Leva-se anos para alcançar esse nível de detalhes (Carmen contemporizou) prêmio do mais alto pessimismo. Há em todo escritor trágico, essa necessidade de encontrar o ENTRE das coisas, esse movimento em direção à LUZ daquilo que não pode ser iluminado, o excesso ue só se torna ultrapassagem exitosa no escandalo das palavras...E que livrinho mais incongruente! Ainda assim, começamos todos a perceber, esmagados, a real amplidão do PROJETO. Um herói de romance ainda mais fora do sistema, da lei-psíquica que rege as portas da sociedade de consumo. Nesse nível de detalhe, onde impera a desesperança, é que se escondem os universais únicos, a duração eterna, o Chikai Bardo, o inimitável barômetro próprio(.) ---- concluí. Sabia exatamente sobre o que ela estava falando: nas extremidades da minha teia de palavras vivas, eu registrava a mais leve vibração, que se prolongava até meu corpo em ondas de grande intensidade e me fazia, de um salto, atingir o lugar exato em que a consciência se incendeia. A TEIA DO ACONTECIMENTO-APROPRIADOR. Há seis meses, eu iniciara aquele diário, em forma de exegese plástico-política, com um louco apanhado de idéias e esboços para projetos enormes e megalomaníacos em ARTE (escrevi cem mil palavras em oito semanas, e mais de uma vez tinham sido vinte páginas por dia, num estilo que saía vacilante devido à cãimbra do passado  e ao convite persistente da praia; um jargão travado de sociologia, psicologia analítica, farmacologia, hermetismo egípicio, cyber-espionagem quântica, histórias em quadrinhos e show business. Entre idas e vindas ao jornal, o diário adquirira o esboço de mais idéias do que jamais terei de novo; idéias que me chegavam tão rápido e tão ricas que algumas vezes sentia meu cérebro entorpecido pela passagem delas. Durante seis meses, ele foi o embrião congelado de algum tema inconcebivelmente novo. Cheguei a ter um vislumbre do Flaubert deve ter sentido porque, enquanto continuava abastecendo-o, frequentemente uma pilha de palavras se uniam para me proporcionar uma pequena crise de escolha. As consequências do que eu estava fazendo começaram a penetrar no meu ânimo. Como esperava, minhas conversas com o pessoal da Edição eram sempre uma perda de tempo. Sabiam de tudo o que estava acontecendo no Brasil e no Mundo, mas não conseguíamos encontrar o significado apropriado, falando uns com os outros como os políticos falam no rádio. digo: sempre em defesa própria. A noção de que deveríamos passar adiante o que sabíamos consumia nossos nervos com uma urgência infantil que sempre nos frustrava, no final. Heresias perigosas eram cometidas em nome do arrivismo e do protagonismo de alta-rotatividade. Eu usava do bom-humor, incomodando a firmeza dos vínculos que tínhamos uns com os outros, e deixando que caprichassem nas retaliações.  ----- Esse é o nosso mundo (lhes dizia) totalmente lacerado, filho da Pompa com a Ditadura, que de vez em quando sai de férias, engordando para voltar à carga; filho da predominância do efêmero; das teorias rapidamente esgotadas; que, desejando recuperá-las, nós calamos e foto-montamos. O mundo onde as coisas, laceradas pela Espada do tempo ou do Ditador, talvez finalmente COLEM (.) ----, era como se eu  estivesse cativo dos sintomas da empolgação suicida, prodígios de trabalho rápido, e uma confiança absoluta de que poderia continuar para sempre. Mas logo depois me encontrei perto de um segundo estágio, onde o que fora rápido era mais como uma febre, com um primeiro vento de fadiga passando sobre mim, e um conhecimento de que no final da noite alucinada me esperava apenas um frio drogado. Eis-nos diante de outro aspecto do Diário: o homem sem particularidades, livre da forma humana, intoxicado ao luar, enquanto fuma na janela do hotel, não se reconhecendo mais na pessoa que é, para o qual todos os traços do particularismo não fazem dele nada de particular; jamais próximo daquilo que lhe é mais próximo, jamais estranho àquilo que lhe é exterior; escolhendo ser assim por um ideal  cósmico pirata de Liberdade: desapegado de si mesmo, mais além do Umbral do Silêncio, sumindo-se cada vez mais fundo nas obscuras profundezas da força que sustenta seu corpo, sem nome ou individuação. Força que, amplificada, invade toda a Natureza, substantificando o tempo e transportando miríades de seres, sob mil formas adotadas instantaneamente ---- irresistível, selvagem, inesgotável, incansável e ilimitada, consumida por uma privação e uma insuficiência eternas, em que os fatos particulares estão sempre prestes a perderem-se no conjunto impessoal das relações antes de serem apropriadas pelo DHARMA, que marca a interseção momentânea. Ainda assim, eu era uma árvores que suportava a seiva ao invés de sentir a queda das folhas. Meu jeito de rir, inclusive, estava sendo bastante comentado no Jornal. As pessoas bem humoradas se divertiam; outras, se ofendiam facilmente. ---- NÃO RIA --- disse-me Sabrina ---- PARE COM ISSO! NÃO É UM SOM NORMAL (!) ---- em seguida, tentava explicar-me dizendo que era muito suscetível à influência do riso nas cisas de pessoas que dirigiam o olhar para mim . A Máquina Abstrata Viva (dizia) Tão específica, e aplicável a tantos negócios: novas listas de regulamentações bancárias, mudanças políticas súbitas, mercados acinários abalados, a magnitude moderada da moda, a previsão de grandes acontecimentos e, claro, as ''CASCATAS DE PREÇOS'' : digo, todos os elementos que compõem o preço das coisas, desde a margem líquida conseguida até o preço da lista de cada transação. O custo fixo, o custo variável da produção, os impostos, o custo de servir, o custo de ''promover'' e os descontos ---- em cada decisão de preços. A GRANULARIDADE DAS MINHAS ANÁLISES INTEMPESTIVAS! Mas Sabrina, e sobretudo Beatriz, rejeitavam tais análises, afirmando que eu não sabia tratar o DINHEIRO com ''deferência de fórmica de escritório'' ; e que eu me desvalorizava, que me esquivava das potencialidades do sucesso comum em prol de um ritmo neural irrefletido totalmente animalesco, carregando e descarregando, como um maníaco com uma escopeta, todos os centros da mente que eram forçados a tomar decisões difíceis. Ao rasgar a sintaxe convencional, eu atacava os hábitos da subjetividade domesticada que ninava o DINHEIRO, além da carne sutil que recobria os nervos dos consultores, de modo que as substâncias bio-químicas que sustentavam o equilíbrio das operações diárias sumiam de uma hora para outra, sem aviso, quando meu ''cavalo carbonizado atacado pela peste'' irrompia como um disparo no painel de controle. Sendo Sabrina também decoradora de interiores, além de proprietária de várias casas de praia na região, a cuidadosa elegância burguesa e ostentação eram naturais nela. De repente, me vinha a idéia de sexualiza-la novamente. Como naquele período da traição conjugal. Em outras palavras, deixar a Máquina Viva do Onanismo Tântrico deflorá-la a vontade, transformando-se numa extensão espectral viva da parte louca e vaidosa da minha personalidade, ao passo que as ofensas dela contra mim se generalizassem numa orgia sado-masoquista sem cura. E eu realmente fiz isso, algumas vezes, e foram momentos muito fecundos em reações. A sagração do tempo, nessas circunstâncias, tornava-se impetuosa, o que me permitia orquestrar desintoxicações diárias e exatas, para logo voltar a amamentar com erva as novas células , recém-chegadas ao mundo após cinco ou seis dias de abstinência (punhado de alcalóides desconhecidos), oscilando entre a casa de Sabrina e a rua dos bares, em frente à praia da Concha. ----- Acho que a Natureza nos inflinge as regras de Esparta e do formigueiro (Carmen disse) Vale a pena contorná-las? Até onde vão nossas prerrogativas? Onde começa a zona interditada para você, K? No ópio? ---, mas o ópio, para mim, não era tão nulo, nem tão acessório, e importava-me sua potência para mudar o rosto dos acontecimentos. ---- No ópio (expliquei-lhe) aquilo que leva um esforço literário à morte é de ordem eufórica ou heróica, por isso suscita oposição. A maior parte da tortura provém de um retorno forçado à vida, de uma desintoxicação, o que não era o caso no momento. A força de um verão inteiro havia agitado minhas veias, tinha feito borbulhar meu sangue, arrastando para dentro de mim blocos de gelo e fogo, que eu transmutava no dínamo das frases após cada noite de apocalipse tântrico no retiro do quarto escuro.  Trabalhando cada vez mais a custa de truques, fumava haxixe na noite anterior, e depois me dopava com uma overdose de ansiolíticos para domir. Ao amanhecer, forçava-me à auto-propulsão: me sentia ágil com novas percepções, conseguia ler palavras novas nas palavras que já tinha, e assim podia continuar no ritmo do trabalho, com a parte mais escrupulosa do meu cérebro lento demais para interferir. Minhas capacidades lógicas foram ficando fracas dia a dia, mas a nova fase do meu livro tinha sua própria lógica, e assim eu descarte todo raciocínio prudente. Era a matéria rápida das associações e sinapses que importava para tira-lo do limbo, e nisto eu andava insuperável: podia descobrir novas experiências nas frases do meu texto como um eremita que saboreia a Revelação das Escrituras; via tantas coisas em algumas frases que de bom grado mergulhava parágrafos inteiros no poço do amadorismo; desvios da forma não representavam nada além de atrativos. E havia também todo o desperdício da discussão feroz, ainda que não ouvido, entre os exércitos do Ego e do ID: ''Vi fracassar (pensava comigo, naquele ponto suspenso) vários intentos de conquistar e manipular o mundo. O mundo pertence ao Espírito, portanto, não deve ser manipulado. Quem o manipulo, o corrompe; quem pretende conserva-lo, o perde. Lao Tsé''. Logo depois, esperava que Carmen ressurgisse para me fazer ver as coisas de outro ângulo, se não estivesse de acordo. Mas as personagens agora me pareciam mais fortes, o ar tinha mais calor, e eu tornara-me diariamente mais sensível à nuance sexual de cada gesto feminino, palavra ou objeto, de modo que o livro se carregava sozinho. Talvez até mais, numa fria talhadeira de diálogos, penetrando valentemente a argamassa fosca de todas as objeções. ---- Me pergunto se (Carmen disse) esses sábios, a despeito de sua boa intuição, sabiam realmente o que expressavam as palavras. PERDER O MUNDO soa bem '. Mas seria preciso confrontar o autor pessoalmente, como fiz com Beatriz, ou relê-lo tantas vezes seguidas que se começasse a ver tudo em fosfenos, algo superior à letra, percebido diretamente como energia, pontos de luz esvoaçantes, ou como uma inteligência inorgânica agarrada à leitura, tal como um clavo ardendo, que revelaria em andamento, no mundo além da mente, um livro mais perigoso do que parecia. Experimentei isso no hospício, lendo Nietzsche, e nem vieram procurar saber o que eu andava anotando no pé das páginas. Entre o lado de fora e o de dentro, nenhuma diferença. Para sair da internação, bastou mostrar-me disposta a voltar a me comportar como uma pacata consumidora entre outras. Freud convenceu a polícia psiquiátrica do mundo de que era possível realizar contratos sociais com os loucos para que estes voltassem à vida em sociedade regulados pelo regime condicional da Indústria Farmacêutica listada nas Bolsas de Valores; desde então, o capital de giro do setor circula mais rapidamente, extraterritorialmente, na velocidade de suas próprias ''doenças''. Mercadorias como sofrimentos psíquicos e ajuda profissional tornaram-se ativos de grande rentabilidade, pairando acima dos sabujos do consultório, mas com nomes e logomarcas sombrias, todas conectadas à engrenagem da salvação da alma pelo consumismo. Anorexia, surtos-psicóticos, acessos de caridade induzidos por depressão, e o círculo vicioso da presunção sexual, subproduto dos distúrbios de ansiedade competitiva, também convergem para a indústria na forma de moda e propaganda enganosa (.) ---- ela disse. Em minha mente, eu também tinha agora em andamento um livro mais perigoso que o planejado, e minha paranóia provocada pelas drogas via longas sequências em cada frase de diálogo. Certamente, com a chegada de Carmen no hotel, pude manter temporariamente n lugar aquele terremoto extasiado. ---- Ao decidir escrever essa última parte, acho que salvei o livro inteiro de ser uma obra menor, mas as custas de uma esplendorosa desproporção (.) ---- eu disse. A mesma ansiedade, obstinada em julgar tudo do ponto de vista do meu ritmo. ---- Bom ,K. Sinceramente, acho que voce não está em condições de pensar nesse livro no momento. Pelo que me descreveu ontem, cada semana de trabalho nessas condições lhe custa um bombardeio, impregnado e drogado de luxúria, haxixe, prostitutas, Rivotril, álcool e café, trabalhando super-alerta e exausto até a morte(.) ----, ela disse. Mas eu tinha passado do ponto em que poderia parar. Não sabia mais coisa alguma, de repente não existia mais esperança alguma, ninguem confiável, nenhuma porta aberta, nenhuma aura brilharia no mundo nunca mais. O mundo seguiria arrastando consigo o esoterismo de cada ilusão romântica, e suas ovas de discos e shows em estádios, passeios turísticos, hecceidades comerciais, day-use em hotéis tropicais, salas de conferência, edições de jornal,  ministros em aeroportos e aquela garota de programa loira que eu... enfim, eu não tinha mais aquele sentimento claro de como as coisas funcionam, que é o que você necessita para as proporções de um romance longo, a prosa e o sexo espessos como a realidade. Eu me sentava numa cadeira e assistia uma partida de futebol pela televisão, ou me levantava e ia no calor até um daqueles quiosques de côco gelado na beira da praia. Era a minha saída do dia. ''Eis aqui (eu me repetia) um homem que parece preferir a morte à desfiguração da forma perfeita do próprio egoísmo. Mas um homem assim está seguro (concluía) '', vendo-me solitário na praia como alguem mergulhado num sonho rarefeito. Mais de uma vez, meu coração era invadido pelo desejo repentino de ouvir uma voz humana, enquanto um barco pesqueiro, à distância, mal se distinguia da água negra em que flutuava sob a noite. A caminhada, outras vezes, parecia uma patrulha sob um sol tropical, e era de dois quarteirões apenas, do hotel para a praia, nada mais. Quando voltava, ficava deitado, minha cabeça perdendo os invólucros externos da sedação, e com a migalha do Rivotril a primeira cobra de pensamento coleava em meu cérebro; e eu ia tomar um pouco de café (era uma viagem até a cozinha, mas quando voltava estava segurando um caderno de anotações e uma caneta). Algmas semanas depois, fui até o quiosque na beira da praia e voltei para casa com um pouco de mescalina. ''PROGRESSO'' , pensei ''Será bom dar à luz a moda americana''. E talvez a gente realmente morra um pouco com o veneno da mescalina no sangue, mas o sistema nervoso, neutralizado pelo convício social e a Doxa, substitui o mero narrador pela Máquina Abstrata de Narrar e os agenciamentos sem sujeito. No fim de uma longa semana de viagens pelas praias da região, da qual voltamos cheios de fotos de surv e ondas gigantes sob céus de tempestade, o Livro Inacabado ( e sua sequência) flutuou para dentro da mente de Carmen, e eu me sentei empertigado no sofá do hostel diante dela, o cachimbo aninhado na mão em concha, e com a outra, a esquerda, atravessei a membrana do prazer estático e cheio de luz que nos imobilizava na auto-contemplação, para encontrar seu nariz minúsculo, que fungava, e sua alva face colegial, na qual eu via a própria LUZ DE DEUS saindo de alguma matéria minha que ficara impregnada nela, durante aquelas caminhadas na chuva sob o efeito da erva. Com as palavras brotando uma a uma, em subidas e descidas separadas, elegantes em suas curvas, tranquilas em seus vôos, como o toque do ser transformado em outro ser, as últimas 160 páginas do Livro vieram à minha cabeça num estalo, como um bloco de concreto subitamente materializado entre micro-cristais de calcita. ---- Morfina que vira fantasma sob a chuva, sombra que vira foda, na encruzilhada do espelho Dá para imaginar o trabalho dos alcalóides na sua cabeça, K. Mas agora, deve vencê-los. são as lendas quem o recomenda: a expulsão dos demônios por intermédio das ginásticas respiratórias chinesas. sua ironia, inclusive, será muito útil a esse desígnio. ---- Carmen disse, de repente, e um zunido na minha cabeça indicava que minha mente estava de novo se armando. ---- O termo ''Profeta'' (eu disse), tomado do grego para designar uma condição estranha à cultura grega, nos enganaria se nos convidasse a fazer do ''Nabi'' aquele que apenas ''diz o futuro''. É uma dimensão da fala que a compromete em relações com o tempo muito mais importantes do que a simples descoberta de certos acontecimentos vindouros (.) ----, de vez em quando, olhava para os contornos evanescentes de CArmen, com a chuva no vidro da janela ao fundo e, pouco a pouco, ela se fundia na textura uniforme da noite. Por fim, antes de continuar, não vi na direção dela nada senão uma escuridão semelhante à uma parede sólida. ----- Ouvir o TROVÃOé difícil; ouvi-lo e ve-lo com seus relâmpagos, dificílimo (!), e dizer que antigamente o trovador chamava-se também TROVÃO, de trova... mas não creio que os trovadores de antanho trovejassem como o TROVÃO de agora. Quando ele surge, indesejado, áspero hóspede, todos nos preciptamos para o quarto de oratório, invocando Santa Bárbara e São Jerônimo. similia Similibus Curantur. Esconde-se também o canto do Magnificat, esse outro trovão, mas de música de câmara, e portanto, menor. Lembremonos com frequência!, não deixemos unicamente à Marx, Lênin e Mao a alegria da trovoada. O verdadeiro TROVÃO é assim: puxa a corda de suas descargas elétricas, e logo se retira para o ventre bojudo de DEUS. Ali, todo ovo é um monumento fechado, um auto-monumento. Existem figuras armadas apenas com idéias, e às vezes com apenas uma idéia, que explodem épocas inteiras, nas quais estão envoltos como múmias. alguns, como Jesus, Buddha ou Mozart, são tão poderosos que ressuscitam os mortos; outros nos roubam sem saber e nos lançam um encantamento ou maldição que leva séculos para se desfazer. E há aqueles, como eu, que conhecem o futuro: estes, não querem impor nada; querem supor, ou nos dar um suporte sólido para nossos sonhos. O mundo não continua em movimento apenas por ser uma proposta de pagamento. Nossa exigência militar, ENTÃO, chamemo-la temporariamente de ''pintura da vergonha prévia'' --- uma das principais atribuições do escritor contemporâneo. Pois é preciso que ele adquira a má-consciência do próprio tempo, antes de COMEÇAR, porque o que está em jogo ''aqui'', entre esses limites, o que se inscreve , ou PASSA, é ESCANDALOSO. É a verdade da narrativa que nos choca, incomoda e insulta, por um escandalo evidente que não sabemos, no entanto, situar. Descobri uma agulha à luz do TEMPORAL (!) --- ,eu disse. Ela riu com uma euforia superior à saúde. Continuei: ----- O TEMPORAL  parte da vontade desorganizada: trovão, raio, chuva, pânico. Procura-nos, envolve-nos, descarregando a eletricidade que ele próprio encerrava. O Temporal, ao mesmo tempo, mostra oculta a realidade. É bem deste mundo, mas revela-nos um ângulo do outro. QUEM É DESTE MUNDO? QUEM ESTÁ? O VERBO DESARTICULA-SE, O SOM . INQUIETANTE PENSAR QUE O INVISÍVEL ADVERTE. GOSTARÍAMOS DE PODER INCRIMINAR AS PALAVRAS.. SÓ QUE NÃO! NUNCA ELAS FORAM MAIS ESTRITAS; ISSO, OU AS PRÓPRIAS CIRCUNSTÂNCIAS, PARA FAZER UM AFAGO EM ORTEGA Y GASSET... mas isso bem poderia ser reconfortante; ou ainda que certos detalhes, que devemos reconhecer como obscenos, decorrem de uma necessidade que os enobrece, tornando-os inevitáveis não apenas pela ARTE, mas também por um constrangimento talvez moral, talvez fundamental. A contradição tem, certamente, um grande poder escandaloso. Que coisas muito baixas e gestos que não convém aqui mencionar se imponham a mim de repente, como portador de certos valores, essa afirmação , no instante em que ela nos atinge, com uma evidência contrariante, contrastante, incontestável e intolerável, nos toca ESCANDALOSAMENTE, qualquer que seja nossa liberdade em relação ao que o que o costume nos faz considerar como muito baixo ou muito alto. Nenhum Dubuffet consegue pintar a matéria do TEMPORAL! Talvez todas as coisas sejam ''através dele''. O Temporal nunca estudou, sabe mil pontos obscuros que nos apraz esquecer. O texto do TEMPORAL! Sem elucidar seus propósitos. O escuro. A saia. O esforço que fazemos para isolar teoricamente o ponto em que o escândalo nos atinge (apelando, por exemplo, ao que sabemos do sagrado, objeto de desejo e de horror ) assemelha-se ao trabalho dos glóbulos sanguíneos para renovar a parte ferida do escandalizado, o EGO. Porquê ISSO? EXASPERA-SE! E mesmo que respondamos à Ele apenas pelo riso, pela ironia, o mal-estar ou a indiferença, há na situação que Ele afirma diante de todos, uma certeza tão simples, embora completamente incerta, ligada à uma verdade tão exclusiva e tão extensa, que todos sentem que suas atitudes, quaisquer que sejam, já fazem parte d ´Ele e o confirmam irresistivelmente (.) ---- concluí. Carmen sugeriu ter ouvido atentamente, mas era mentira. Logo depois, voltou ao assunto do ''PROGRESSO''. ---- Uma regra ou um lirismo ? (quis saber) Bem sabes que, com ISSO, está metendo a colher no pirão mole das células jovens, atrapalhando o trabalho racional do cérebro. A palavra não arde apenas desse Fogo (.) --- um imperceptível sorriso irônico fez ondular os cílios dela, que contemplava o círculo que, com a ponta do guarda-chuva, ia traçando no tapete.

K.M.






domingo, 24 de março de 2019

SOBREVIVÊNCIA AUMENTADA

SOBREVIVÊNCIA AUMENTADA



O tempo pseudocíclico é o do consumo da sobrevivência econômica moderna, a sobrevivência aumentada, em que o vivido quotidiano continua privado de decisão e submetido, não à ordem natural, mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho; e, portanto, este tempo reencontra muito naturalmente o velho ritmo cíclico que regulava a sobrevivência das sociedades pré-industriais.

(..)


¿Quién sabe cuántas vacilantes alegrías persistieron, cuántas generosas empresas maduraron, cuántos fatales propósitos se desvanecieron, al chocar las miradas con la palabra alentadora, impresa, como un gráfico grito, sobre el disco metálico que circuló de mano en mano?… Pueda la imagen de este bronce — troquelados vuestros corazones con ella — desempeñar en vuestra vida el mismo inaparente pero

decisivo papel.


Pueda ella, en las horas sin luz del desaliento, reanimar en vuestra conciencia el entusiasmo por el ideal vacilante, devolver a vuestro
corazón el calor de la esperanza perdida.




Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como um sentido privilegiado da pessoa humana – o que em outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual (DEBORD, 1997: 18).



Aún más que para mi palabra, yo exijo de vosotros un dulce e indeleble
recuerdo para mi estatua de Ariel. Yo quiero que la imagen leve y graciosa de este bronce se imprima desde ahora en la más segura intimidad de vuestro espíritu. Recuerdo que una vez que observaba el monetario de un museo, provocó mi atención en la leyenda de una vieja moneda la palabra Esperanza, medio borrada sobre la palidez decrépita del oro. Considerando la apagad inscripción, yo meditaba en la posible realidad de su influencia.




¿Quién sabe

qué activa y noble parte sería justo atribuir, en la formulación del carácter y
en la vida de algunas generaciones humanas, a ese lema sencillo actuando
sobre los ánimos como una insistente sugestión?

¿Quién sabe cuántas vacilantes alegrías persistieron, cuántas generosas empresas maduraron, cuántos fatales propósitos se desvanecieron, al chocar las miradas con la palabra alentadora, impresa, como un gráfico grito, sobre el disco metálico que circuló de mano en mano?… Pueda la imagen de este bronce — troquelados vuestros corazones con ella — desempeñar en vuestra vida el mismo inaparente pero

decisivo papel.


Pueda ella, en las horas sin luz del desaliento, reanimar en vuestra conciencia el entusiasmo por el ideal vacilante, devolver a vuestro
corazón el calor de la esperanza perdida.

POST SCRIPTUM

 Afirmado primero en el baluarte de
vuestra vida interior, Ariel se lanzará desde allí a la conquista de las almas. Yo le veo, en el porvenir, sonriéndoos con gratitud, desde lo alto, al sumergirse en la sombra vuestro espíritu. Yo creo en vuestra voluntad, en vuestro esfuerzo; y más aún, en los de aquellos a quienes daréis la vida y transmitiréis vuestra obra.


Mais uma vez, aqui, a “intimidad” desempenha importante papel.
Porém, o que se vê na cena final de Ariel é eloqüente, e penso que bastante:
um mestre que desperta a suprema esperança em seus discípulos e
em seguida se retira. O gesto de retirar-se consigna a “conquista de las
almas”, lançada como repto a uma elite espiritual, agente civilizadora
do Novo Mundo.

K.M

sábado, 23 de março de 2019

ENTREVISTA PAIDEUMA

---- Você está quase concluindo os “Cantos” agora, e isso me faz pensar sobre o começo deles. Em 1916 você escreveu uma carta na qual falava sobre a tentativa de escrever uma versão de Andreas Divus nos ritmos de Seafarer. Isso parece uma referência ao “Canto 1”. Você começou os “Cantos” em 1916?
----
— Eu comecei os “Cantos” por volta de 1904, eu acho. Eu tinha vários esquemas, começando em 1904 ou 1905. O problema era conseguir uma forma – algo elástico o suficiente para usar o material necessário. Deveria ser uma forma que não excluísse algo meramente por que não encaixava. Nos primeiros esboços, um rascunho do atual primeiro “Canto” era o terceiro. Obviamente você não consegue um ótimo pequeno mapa de ruas assim como a Idade Média se apossou do Céu. Apenas uma forma musical daria suporte ao material, e o universo Confucionista como eu vejo, é um universo de pressão e tensões interativas.


EZRA POUND (entrevista)

Extratos da Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, de Frederic Jameson


Extratos da Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, de Frederic Jameson

'Tais ''soluções filosóficas'' que se processam, como dissemos, através da diferenciação de códigos e modelos incompatíveis ( e que tentei reformular na doutrina dos níveis em O INCONSCIENTE POLÍTICO) pertencem, é claro, ao mundo fenomenal e estão assim sujeitas a se transformarem em ÁLIBIS IDEOLÓGICOS... De qualquer maneira, a proposta tem claramente uma relevância imediata para a questão dos ''novos movimentos sociais'' e sua inter-relação com o capitalismo, na medida em que nos oferecem a possibilidade simultânea de engajamento político ativo, bem como de uma contemplação e de um realismo livre de ilusões, e não paenas uma escolha estéril entre duas alternativas''

Frederic Jameson
PÓS-MODERNISMO
A Lógica Cultural do CapitaLismo Tardio

''A totalidade global é agora trazida de volta à mônada, em telas brilhantes, e o ''interior'', antes o campo de provas heróico do existencialismo e de suas ansiedades, torna-se agora auto-suficiente como um show de luzes, ou como a vida interior de um catatônico (enquanto, no mundo espacial dos corpos verdadeiros, os extraordinários deslocamentos demográficos das massas de trabalhadores migrantes e dos turistas globais invertem esse solipsismo individual em uma intensidade inigualada na história mundial''

Frederic Jameson
PÓS-MODERNISMO
A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio



''... desenvolve-se um tipo de pensamento histórico que interpreta tudo isso como uma espécie de PÂNICO QUE SE AUTO-REFORÇA; e basta mencionar o imencionável --- que todas essas ciências evoluem historicamente --- para que o próprio ritmo da mudança histórica se intensifique, como se demonstrar a ausência de uma base ou fundamento ontológico fosse de repentde desatar as amarras ue tradicionalmente mantinham as disciplinas em seus lugares''

Frederic Jamenson
Idem



''... a própria propensão para ficar desmoralizado e desencorajado por uma LÓGICA DAS CIRCUNSTÂNCIAS, e a sua utilização como uma desculpa e um álibi para a passividade e para a retirada contemporizadora, TAMBÉM É SOCIAL e por isso permanece uma livre escolha no sentido individual . nossa própria reação à necessidade é expressão de liberdade''

*


''Pode-se então deduzir daí uma lição simplista sobre os efeitos debilitadores da crença na inevitabilidade histórica e a capacidade energizante de certos voluntarismos''

Frederic Jameson
Idem

'O que precisamos saber é se essas ansiedades e narrativas, nas quais está investida essa imaginação, realmente ''intentam'' o futuro (no sentido técnico de Husserl, de colocar um objeto genuíno) ou de algum modo se retorcem e voltam para alimentar nosso próprio momento no tempo. A visão paradigmática de tudo isso, o filme australiano ROAD WARRIOR (que parece ter herdado a tradição local derivada de ON THE BEACH e do sentido geográfico de ser o último da fila para a nuvem atômica) retrata o que os russos chamam de ''tempo de desordens'', uma ruptura da civilização, uma anarquia universal e regressão ao barbarismo, que, como as jeremiadas mais simplórias da própria decadência, poderia simplesmente ser considerado um comentário pouco original e uma sátira sobre o estado de coisas...''
IDEM



'Tais ''soluções filosóficas'' que se processam, como dissemos, através da diferenciação de códigos e modelos incompatíveis ( e que tentei reformular na doutrina dos níveis em O INCONSCIENTE POLÍTICO) pertencem, é claro, ao mundo fenomenal e estão assim sujeitas a se transformarem em ÁLIBIS IDEOLÓGICOS... De qualquer maneira, a proposta tem claramente uma relevância imediata para a questão dos ''novos movimentos sociais'' e sua inter-relação com o capitalismo, na medida em que nos oferecem a possibilidade simultânea de engajamento político ativo, bem como de uma contemplação e de um realismo livre de ilusões, e não apenas uma escolha estéril entre duas alternativas''

Frederic Jameson
PÓS-MODERNISMO
A Lógica Cultural do CapitaLismo Tardio




Post Scriptum meu




Apenas a TRANSCODIFICAÇÃO nos liberta da sentença de prisão perpétua no comentário e sua biliosidade desesperadoramente repetitiva, e desse modo surge a exigência de invenção de habilidades completamente novas para lidar com essa ''libertação'' (no sentido forte do interpretante de Peirce). O fato de que ''efeitos ideológicos imprevistos'' podem se derivar desse novo mecanismo é algo, por sinal, bastante previsível, levando-se em conta a identificação popular pós-moderna entre Mercado e Mídia. O mais divertido é que as novas miragens ideológicas são produzidas a despeito do aparato corrente, em vez de graças a ele. A reificação do fato, , para não falar em sua transformação em ''mercadoria'' (veja sua judicialização financista na proibição de ''clippings'' dos jornais impressos), nos proporciona um outro código para caracterizar o destino pessoal ou sorte do discurso teórico, quando ele se vê transformado na filosofia pessoal ou sistema de alguém na guerra discursiva incessante que, no fim das contas, acaba perpetuando positivamente o direito de todos os envolvidos.

K.M.


DISPUTANDO INUTILMENTE, Segundo o Hexagrama 6 (SUNG), do I Ching

Está proibido escrever sobre certo ''movimento'',
de modo que vou escrever sobre os movimentos
e as forças permitidas. No manuscrito de Mawangdui,
por exemplo, fala-se até em ''passar certidão de inocência''
para quem está parado no meio, onde o Abissal é o
perigo da astúcia diante da força, o nascimento
da idéia de conflito. Compreensivo, curioso
em termos de caráter, pela reunião de uma
profunda astúcia no interior, e uma forte decisão
no exterior. É BENÉFICO FICAR NO MEIO,
ir até o fim é prejudicial, leva à perda da
perseverança, em favor dos olhos do conflito:
''Você é sincero e está sendo impedido
(...) Não é favorável atravessar a Grande Água''.
Certo, mas há a oposição, sem muita autoridade
para solucionar o conflito Assim, em meio aos teus
murmúrios, ruídos, indexagens e desfalecimentos,
és de repente promovido ao horror manuseador
de segredos y mayólicas, e é introduzido em
todas as negociações, considerando cuidadosamente
o COMEÇO de cada uma, o legado novo rico da APREENSÃO.
Seis na primeira posição: ''As pessoas de sua cidade,
trezentos lares, permanecem livres de culpa.
Na luta contra um adversário superior
a retirada não é uma vergonha, e evita
más consequências e discussões ásperas
entre as instâncias de decisão do debate,
sempre autorizando com preocupação
o olho da agulha, e ordenando um 
silêncio de camelo sem fissuras
diante do higiênico entusiasmo liberal.
Há sempre alguém cuja atitude interna
no início não encontra a paz, e deseja logo
MOVIMENTAR-SE, em busca de uma
situação melhor, pois sabe que o espelho
lhe devolverá intacta sua carcaça indivisível
e seus minifúndios de discórdia. FAVOR NÃO
ROCURAR NOVOS ENCARGOS, INSÔNIA OU
POSTERGAÇÃO INÚTIL. SHÀNG: ''Depois de tudo,
valorizar como o esperado, respeitar.
CHÉNG: ''Completar, aperfeiçoar com sucesso, e
'entender tudo de símbolos''', ESPERAR SEM 
INQUIETAR-SE. H66- Disputa demais.
H65 - Árbitros da discussão aparecem.
H64 - Abandona a disputa, mas insiste
em sua posição. H63 -- Envolve-se em disputas alheias.
H62 - Abandona a disputa. H61 - não se deixa
envolver em disputas alheias. ANDANDO COM
CUIDADO, EM MEIO A PEXINXAS INESPERADAS.
NÃO SE PROLONGAR NOS ASSUSTOS
OU ALONGAR-SE MUITO NAS PALAVRAS.
REMAR NOTURNAMENTE, LUNAR E ESPECTRAL.
E apenas nesse aspecto ser sectário:
Nossa arrogância masoquista, nossos escrúpulos
bandengues, nosso menosprezo, por sutil que
seja nossa capacidade de ser menosprezado
por nossa falsa modéstia. Aquele mundo derrotado
possuía rasgos dignos de menção, uma rigidez
dispersa nas declarações de fato, e a calma
de quem nada havia perdido. Nove na sexta posição:
''Obter uma distinção através do conflito não é,
afinal de contas, algo que imponha respeito''.

K.M.

terça-feira, 19 de março de 2019

ISENÇÃO DE TODA PAISAGEM

Sem nenhuma pelúcia na voz,
desinteressaram-se de nosso assunto.
Impublicável, tudo veio à tona
no cimento do ponto final,
numa sensação de sobressalto
assaltante, e hipnose de perspectivas,
suportando a realização de lucros
com o lamber da língua salgada,
monótona no instante da paisagem
de uso úmido e repetitivo.
Nosso passeio foi cinza
em uma hora que ainda insistia
na insolação de carne e espera,
onde um punhado de nosso corpo
juntava indícios superpostos, e se esvaía
sem construir nenhum castelo.
O cenho enfezado dos incertos
no escuro, assemelhando-se aos urgentes
do dia claro. No entanto, 
não preciso do alívio da água
que passa imóvel e intocada,
bonita de se ver mas perigosa
na rua cinza, súbita e impura água
com suor na entreperna de cavala
e depressão em baixo relevo
(não querendo parar neste pegajoso
alarme de lágrimas alheias, a mão trava
a aceleração do sentimento
com o avanço da paralisia ótica).
Os bastidores da sensação, amada
imprensa, prévia ou posterior,
não sabem ainda ser isentos 
de toda paisagem caprichosa.
Uma arte quase ginástica
driba-lhes os dados frios
no espaço em branco das apostas,
para quarar os lances que
projeta na respiração ---
preço único com sua linha 
de montagem em aberto.

K.M.

domingo, 17 de março de 2019

DENEGAÇÃO

Feito do luar mascarado, cindido
e exato na encruzilhada sem sentimento.
Incrédulo no ser humano e dividido
entre confissões hors-texte
que nenhuma melancolia conhece.
Fosso final, todo ARTE,
durando no Ser-Aí
in whinning poetry
(sea-waters fretfull salt away);
e daí o poema exigente
e suas sucessivas leituras à margem,
emendando cada assunto que escurece
e ladra contra o chão do espetáculo.
A Denegação é o caminho do aço,
da Recepção interminável, entre tantos 
resíduos menores, que se vai fazendo 
edição da noite, amordaçada pela mirada de incompreensão
e amarrada ad nauseam aos cuidados de superfície,
essa nojenta maquiagem de trejeitos chulos
que em números nunca consegue ser tão feroz.
Assim, exploro desapiedadamente
tantas exposições diferentes
do mesmo assunto, que pareço pálido,
quando na verdade meu bronzeado reluz,
sucintamente cônscio da Verdade Única
''for both their triumphs so are published''
através dos anos, a pose inteiriça:
''Who are a little wise, the best fools be,
John Done? Wich have their stocks entire,
and can new rewards, outbid me...''

K.M.