domingo, 24 de fevereiro de 2019

Sim, mas talvez NÃO.

Suicidas desde o começo,
mas não estranhos àquele
caminho da Natureza bruta
que olha sem piscar, acenando
sem nenhum reparo ou atraso.
No trato se desfaz o corpo.
Conspira, corpo, a cada
respiração, contra o sangue
apressado que te molda.
Tortura vagarosa do inopino,
dentro do debate em gestação.
Sim, mas talvez NÃO. Com
causa rediscutida, reincidente,
procurando uma saída
um pouco mais surda, NO ESCURO.
Arrumação da mesa? NO ESCURO.
Morte ou esquecimento. A mesa
marcada por tudo que foi alçado
à idéia fugidia da morte, levantando
hipóteses em segredo de Estado.
Fetos de mísseis operados
na redoma uterina da Defesa,
isolado de qualquer ultraje,
mas com o vento traiçoeiro atrás.
Se fosse necessário agora
o instinto mais instantâneo,
e a intenção pesada se descobrisse
abandonada à própria sorte,
a vida nua não atingiria
a noite obrigatória, que
ressuscita sem susto
de seus ensaios finais.
Nenhum SOS complacente,
enquanto o rosto ganha um
verniz enjoativo e esmagado
sob o Sol. Todo dia agora é ultimo?

K.M.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

RECORDAÇÃO DA ACRÓPOLE

Escolhi uma maneira de interpretar a Grécia ligando em tudo a Grécia antiga à moderna, sem nenhuma solução de continuidade, como fazia Henry Miller que em qualquer ateniense encontrada aqui enxergava Afrodite ou Palas Atena. Eu era o árbitro adequado de todos os desejos imundos e preocupações sangrentas da humanidade, por isto sentia-me perambulando no país certo: ------ Qual seria a verdadeira informação akáshica do país que inventou o diálogo ? (me perguntava: ------ O certo é que a Grécia, talvez devido à elasticidade dos símbolos e do mito, sempre nos escapa (: ''onda, cor de polpa de uva; cinza-oliva aqui perto; asa rosa-salmão da águia marinha lançando sombra sobre a água'' -------, e, vindo da Espanha, eu era um cavaleiro com lento levantar de pálpebras: o elemento mais vivo de Atenas e de toda Grécia era mesmo a LUZ que, nos redimindo de muitas culpas, conseguia nos subtrair à idéia dissonante da morte. Agradou-me substantivamente surpreender o povo nas ruas do bairro velho que conduz à Acrópole, guardando ainda uns restos orientalizantes, com alguma pequena igreja bizantina, antiquários expondo ícones, tavernas onde se pode provar uma posta de marida; peixe assado com salada de alface e orégano. Da parte moderna, com seus incaracterísticos palácios neoclássicos, projetados no século XIX pelo arquiteto de um rei alemão da Grécia (!), retenho os cafés movimentados, Jannaki, Floka, Zonars, Zarakatos, onde me serviam doces a base de laranja e mel (blakava, kurabies) enquanto eu mostrava quanto o dinheiro do mundo valia para mim : ------- Está vendo isto ? ---, perguntei à garçonete; havia quebra-ventos e estávamos no terceiro ou quarto andar; ergui, de repente, uma nota de cem dólares entre os dedos; descansei as costas na parede e, tirando minhas elegantes luvas de equitação, comecei a dobrar o dinheiro. Fazia um aviãozinho de papel: ---- Agora imagine que esse avião foi sequestrado por terroristas (.) -----, eu disse, arregaçando minhas mangas raglã, e lancei o aviãozinho com dois dedos; observei-o ganhar velocidade por entre as luzes enfileiradas, para dentro da atmosfera mais e mais escura. Antes que eu pagasse a conta a garçonete desceu afoitamente para procurar os destroços da aeronave no meio da rua. Minha alma, amante de sensações refinadas, estava agora gratificada pelo origami aéreo enquanto eu subia a colina da Acrópole, recordando que era aqui o centro da Atenas antiga, com seus protagonistas: o homem e a luz; o templo servia como testemunha dos dois. O que resta da Acrópole é suficiente para nos restituir o esquema de uma cultura artística fundada sobre o ritmo e a medida, a ''divina proporção''. Tudo isto é apenas uma digressão para explicar porque tomei o assunto para meditação naquela manhã; tal meditação fortalecia minha vontade. Então, gradualmente revigorada por tais exercícios, a vontade pôde se tornar finalmente o orgão da minha percepção. Comparando a mozarteana sinfonia em sol menor K.550 a uma figura destacada do friso das Panacéias, Schumann aludiu implicitamente ao caráter musical dessa parte do Partenon: poderia tê-lo feito ao todo. Pois aqui se vê, se palpa, se ouve o ''cântico das colunas'', e eu fazia aquilo também para relaxar a tensão nervosa do acidente aéreo. Tendo praticado na noite anterior alguns exercícios de meditação recomendados por Rudolf Steiner no livro ''Conhecimento das Altas Esferas e como Atingi-las '', buscava reconstituir na mente o trabalho imenso da edificação do templo, do qual certamente participara toda a polis, inclusive tantos olhos ilustres, tantos cérebros que até hoje dialogam conosco. O Partenon era um ruína que, sustentada pela força da LUZ, ressuscitava cada dia, GLORIOSAMENTE.

(.)

De volta à Grécia, nada meditativo, passei a cuidar exclusivamente de mim mesmo. Em Creta o brilho do sol era belo, o azul do céu monocromático era de uma altivez emersoniana, porém eu me sentia um pouco repulsivo, coberto de coisas ásperas para desabafar sobre política e economia. ----- Muito bem, K. (pensava comigo) você fez na Cultura Mundial o mesmo que Schaffner y Marx fizeram nas capas e ternos; o que o General Sarnoff fez nas comunicações; o que Bernard Baruch fez num banco de jardim ------ excedendo discretamente qualquer limitação humana. ---, de fato, na minha miscelânea estavam camuflados estes e muitos outros: Yeats, Apollinaire, Julius Evola, Jung, Heidegger, Morris A. Cohen, Gertrude Stein, Anais Nin, estatísticas de futebol e escândalos sexuais da alta roda. Eu havia colocado Salvador, na Bahia, entre os cretenses e associado Búffalo Bill à Rasputin enquanto lia o noticiário político do Brasil na internet. Desembarcando em Heraklion, nome da antiga Cândia, capital da ilha, logo me impressionou a semelhança desta paisagem com a de Castela: terra parda, pobre em árvores além de oliveiras; calor seco e um certo tom desolado. - Uma tal semelhança (me perguntei) não teria impelido (pareceu-me óbvio) o candiota Domenikos Theotocópulos a instalar-se para sempre na castelhana Toledo (?) ------, na verdade, eu divagava gratuitamente para esquivar-me de responsabilidades apoéticas, mania que havia me valido uma dura repreensão de Daiana: ---- Você fica o tempo todo tranquilo como um rei, enquanto todos os problemas humanos do mundo acontecem(: Não há moscas sobre Jesus (.), K, você é incapaz de se ligar à coordenadas espaço-temporais: à um tempo, aos cristãos, aos judeus, aos muçulmanos (: está sempre no mundo da lua, com suas caraminholas sobre algum tipo de destinação cósmica (: diga-me, que Grande Obra é essa na qual está sempre trabalhando (?) -, mas, com seus lindos cabelos ondulados, suas sutilezas astuciosas, a sutil elegância de dedos de unhas pintadas entrelaçados e pernas cruzadas e seus complicados resmungos filosóficos, ela não era uma inimiga perigosa; não era nem mesmo uma inimiga. Era um amor... mas aquelas guerrinhas de sociedade nada tinham a ver comigo, e eu ainda não havia esquecido todas aquelas coisas pesadas que tinha andado dizendo dos caras da Liga IvT. E até a semana passada ( se não me engano) estava na mesma posição que Tolstói - quando simplesmente esquecera-me de participar da História, para lembrar-me apenas da Comédia Histórica, o pior dos jogos sociais. Realmente, não era uma argumentação usual. Tolstói? Tolstói fora assunto da semana passada. O belo, inteligente e aristocrático rosto de Daiana ficava ora pálido, ora enrubescido por emoções ocultas e suaves perturbações intelectuais. Eu tinha pena de nós dois, por tudo que era nosso, estranhos organismos debaixo do Sol. Grandes espíritos fechados em almas orgulhosas. E almas banidas, ainda por cima, ansiando pelo seu mundo original: a Grécia! Andando pelas ruas batidas de sol de Heraklion, parei no mercado de cerâmica que assegurava a continuação, no tempo e no espaço, de um técnica tão afim à sensibilidade grega. Remonto aqui ao século XVI, quando Veneza dominava a ilha de Creta; nesta mesma paisagem metálica o jovem Domenikos Theotocópulos inseguro caminhava, iniciando sua formação nas igrejas e palácios férteis em ícones. Orientado na direção da oblíqua Bizâncio e seus emblemas, habituara-se a ''deformar'' os modelos naturais, transplantando mais tarde para Toledo esse método que a crítica oitocentista ligou erradamente ao seu suposto estigmatismo. Na realidade, cedo se organizou, na confluência desses dois mundos, a família mitológica de El Greco.


Palácio de Knossos.

O Museu de Heraklion hospeda muitas peças fundamentais da civilização minoense. Os vasos de Creta são superiores aos áticos; retenho entre outros o vaso de argila dito ''Adorador de Haghia Tríada''; o vaso Konassa em forma de pássaro. Algumas dessas cerâmicas, de concepção, forma e desenho insólitos, prenunciam Picasso, Brague, Miró. Convém ligar o museu ao palácio de Knossos, descoberto e restaurado no princípio do século XX pelo arqueólogo Sir Arthur Evans com relativo acerto, apesar de soluções infelizes como as reconstituições das pinturas, a começar pelo célebre ‘’Príncipe dos Lírios’’. Diante da comparação, Daiana disse: Eis o que voce tem a fazer . Vá até o Minotauro e diga: ‘’Sou uma pessoa muito distinta ---- poeta, scholar, crítico, instrutor, mapeador, editor. Tenho renome internacional e já assegurei um lugar na história literária dos Estados Unidos. -----, tudo isto era verdade, diga-se de passagem. Acrescentou depois: ‘’E aqui está sua oportunidade: o mundo literário atual está se decompondo. Já não há uma única visão que escape da epidemia. A equipe de criação do Labirinto está carente. Não contratem Fleischer, contratem a mim, ou só lhes restarão intelectuais de terceira, universitários ----, pensava que Daiana era apenas uma intermediária do Minotauro, mas seus olhos estavam vermelhos e sua testa era feita de listras de ferro. Esteve acordada a noite inteira examinando o resultado das eleições, perambulando pelo quarto e o saguão do hotel. Sei que espécie de pessoas ocupavam o pensamento dela: Walpole, o Conde Mosca, Disraeli, René Char. Enquanto isso, eu meditava com sublimidade intemporal a respeito do tempo e da linguagem, em busca de uma base histórica para as lendas de Minos e do Minotauro. A partir de algumas pesquisas antigas do plano de construção do palácio , como também o vestígio de culturas arcaicas ( a dupla machadinha, os enormes chifres de pedra no jardim da esplanada) era possível acreditar na existência de Diana. O ser humano podia ser nobre, mas ainda era todo feito de argila, e a loucura social frequentemente o tornava engraçado e vil. Sforza, por exemplo, tinha toda minha estima, mas nunca lia nada original; estava sempre fazendo cruzeiros ou esquiando em Sun Valley; sem meus pareceres, teria publicado apenas papel higiênico. Livrei-o de ser um bilionário ignorante. Conseguiu chegar em muitas arestas recônditas do mundo intelectual por meu intermédio. E também a uma pouco conhecida visão de Eliot. ----- Sim --- disse à Daiana --- eu lhe conto tudo: Sforza tem um elevador privativo, ninguém consegue chegar à sua cobertura vindo dos andares inferiores. É visto sempre à distância, quando entra e sai do helicóptero. ---, e, horas mais tarde, eu e Daiana estávamos sentados perto de Sforza naquele helicóptero da Guarda Costeira: Homero assegura que a região da ilha de Creta é rica e bela; indicando-nos ainda que o mar cretense tem a cor da borra do vinho. Mas olhando do alto, preferi deter-me mentalmente no museu e no palácio de Knossos, fontes de contínua magia, e explorar as pegadas de Dédalo, máximo inventor: surpreendendo-o a construir o Labirinto, planejado com tão espantosa precisão. Assim Dédalo abriu também uma vasta galeria de textos, de Homero à James Joyce e à Jorge Luís Borges. Pesquisando os passos fluidos de Ariana (sempre segundo Homero) descobrimos que aqui em Knossos, Dédalo inventou para a princesa um grande espaço dedicado à dança. Outra figura diversa: vestida de uma túnica vermelha, fonte da sua cabeleira-diadema, contaminamos todos de sua estranheza, vejo eclipsar-se naquele corredor ‘’la fille de Minos et de Pasiphaé’’. Claro que procurava situar também Idomeneu, rei de Creta, e sua família: não foram eles reconstituídos pelo mais grego dos compositores, isto é, Mozart, numa ópera fundada sobre a idéia do sacrifício, onde o coro alcança o plano épico da tragédia antiga, onde o Mediterrâneo penetra os poros da partitura, sal e espuma ? Entretanto, neste palácio a presença mais tangível é a do próprio Minotauro que existiu desde o começo do mundo; e temo que, cumprindo seu destino destruidor, elevado hoje à uma dimensão cósmica, subsista até o fim. Seja como for, eu havia feito a jogada audaciosa: obrigara Sforza a combater a tecnocracia e a plutocracia de clássicos em punho; através dele, forçara algumas das pessoas mais poderosas dos Estados Unidos a discutir e rediscutir Platão e Hobbes; obrigara presidentes de companhias aéreas, presidentes de Bolsas de Valores a representar Antígona nas salas de reunião. Neste papel, Sforza tinha sido notável, revelando-se um bom educador. Algo que foi lembrado durante o vôo. Mas Sforza também possuía sonhos ambiciosos e jogava agora com seus recentes conhecimentos de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, depositando uma confiança neles que me pareceu excessiva.

K.M.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

BANCO SEM NOME

Diminuir a distância de fachada
com as favas que se produzem
nos estalos crepitantes da cabeça,
que passam como números imóveis,
assistidos milimetricamente pela Sombra,
pesada e intangível, do CRESCIMENTO.
O Crescimento, essa quimera agitada
que alarga vosso abraço escuro, sem
chance à aproximação do Sol.
E à vossa aproximação, ó chineses,
chegam com rapidez maior à mente
todas as causas do carro-forte,
do dia do BANCO SEM NOME.
Jogo de paciência surtado, lapidado
por sobressaltos contra a parede,
sem saber como se dará a partida
ou se vosso túnel enguiçará o sono
do carro com sinalizações opostas.
Da mesa de conferência, não vos alcançamos
NUNCA!, mesmo assim eu vos inscrevo
no tampo mudo que tenho nos dentes,
e na carne da guerra, ante-sala das
sobremesas desafiadoras do acordo.
Meu lugar de honra insiste na cadeira vazia,
ocupada pela tralha de todos os pontos
pacificados, enquanto outros perfilam-se
para o ataque retórico e inofensivo,
assombrando a marcha máxima da Palavra.
Palavra passada a ferro, dobrada na pose
da boca certeira e inaceitável. O martelo
que bate o fim do pregão explode
certa ânsia de recuperação segura,
com moldura de mudança e distorção
do pulso do tempo, firmemente recalcado
pelas chamas controladas da tentativa.

K.M

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

LONDRES 2

Sou o passeante moderno dos museus: percorro quilômetros de quadros, estátuas, desenhos, documentos etnográficos, folclóricos, correspondências antigas escritas à mão; proponho-me ora acavalar, ora distinguir os diversos ciclos de cultura, consultar uma outra versão da história indicada pela diversidade de ambientes, classes, tipos, indumentária, a variedade dos estilos das obras de arte, instintivo, ritual, gratuita, inseridas num contexto religioso, econômico, político; totalizando uma informação que nos ilumina os caminhos do tempo, desde as incertezas do começo até a plenitude do dia atual e o pressentimento do futuro. Citei a National Gallery que forma com outros museus e coleções de arte e história londrinos um espaço de universalidade, uma sucessão serial de universos. O olho múltiplo de Argus segue por toda parte e o tempo é escasso para tantos encontros diferentes . Digo à ela que há, no entanto, existe uma festa maior acontecendo infinitamente nos livros de John Donne, Shakespeare, Purcell, Thomas Browne , Daniel Defoe, Hogart, Swift, Sterne, William Blake, Shelley, Keats, Turner, Thomas de Quincey, Dickens, Robert Browning, Emily Bronte, Gerard Manley Hopkins, Robert Louis Stevenson, Oscar Wilde, Aubrey Beardsley, T.S. Eliot , além de inúmeros etcs importantes. Da minha parte, nunca tentei manter sob controle o número de palavras sagradas; lembro que na noite em que minha avó morreu, pelo que me foi possível reconstituir, passei um longo tempo sentado na cama dela, naquele casarão decadente, provavelmente lendo. Encontraram no quarto, no dia seguinte, os poemas de Yeats e a Fenomenalogia de Hegel. Além desses autores visionários, eu lia também os cadernos de economia, e sabia projetar sobre a imagem da realidade que pintavam um olhar fixo e glacial. De resto, não estava atualizado com os esportes, nem com a vida noturna, a alta- sociedade ou as famílias ricas; nem com o preço dos carros usados, nem com as revistas. Meu cristinanismo havia se tornado do tipo delirante, com estalos na cabeça. Tive uma iluminação de clareza espantosa. Vi nitidamente a posição em que eu colocava o mundo com minha palavra. Tudo que eu fazia a agradava e cogitei a influência de alguma secreta razão feminina. ----- Respire o ar ----- eu disse ----- Diferente da Rua *, hem (?) ''Esse castelo tem lugares agradáveis. O hálito divino abunda aqui''. Imagine Henry James como chofer, ou Walt Whitman, ou Mallarmé. -, uma vez arrancando, eu discutia máquinas, luxo, comando, capitalismo , tecnologia, Mammon, Orfeu e livros de poemas, os ricos de coração, os discos dos Rolling Stones, a América, a China, a civilização universal.

K.M.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

JUÍZO DE AUDIÇÃO VISÍVEL

Toda a crueza do cerco discreto,
quarando ao Sol do olhar ---
inteiriço, sem armistício. O
silêncio, que pede socorro,
espera ver de longe, sem alívio,
todos os russos espinhosos
no peso dessa espera.
Impreciso afeto, sem aceno
ou correspondência, eu me basto
agarrado à germinação dos meus restos.
Afinal, eu não morri a mirrada morte
que me prepararam, e o rosto
era o de menos! A Hidra hidrofóbica,
a palma da mão esquerda,
polícia e carrasco da direita,
acatou os postos esquecidos
e rejuvenesceu sua promessa,
dia após dia, no segredo roubado
do Pai: fechou-se com cuspe o
espírito na carta aberta, sonegando
da Tradição o seu córtex, e
o Mal se fez ouvir, germinando
seus restos na fechadura ácida:
era aço puro aquele rasgo
da respiração presa, subindo do NADA
e se intrometendo em TUDO.
E ainda que perdesse mais de uma vez,
voltava sussurrando altivamente
no Grande Ouvido: ---- Um parto
de novo! Agora, não mais de carne e osso.
Então, a Porta se abria e
mais uma vez, o riso tenebroso
crescia qual onda, rangendo e
depois secando ao Sol.
Não era a morte mirrada,
molhada que lhe prepararam.
O Céu resistia, diante da cena.
Seu desejo de pastorear restos
era obrigado a esperar, ou se contentar
com os restos dos restos, comum.
O Céu rancoroso, que só o amor
não atendido explicava --- a promessa
humana do amor, quantos disfarces
não inventava a Moeda
para manter o homem no chão.
Luta incansável dentro da LUZ,
apagando e acendendo seu
vaga-lume verde, piscando
destinos em confronto
sempre com intenções opostas.
Se deduz que havia uma discussão
desdentada, ocultando os degraus
esperados, enquanto o investidor
avançava pisando em ovos,
elástico e retrátil, através
dos riscos entrecruzados da Sombra,
a Sombra sempre às costas.
A noite, no entanto, acabava
grata ao sonho desfeito nela,
denteado rigor da vigília contínua,
recortada numa ordenação plausível,
sem contra-senso libidinoso
no modo de veicular-se. 
Ainda assim, bastante escorregadio
no guarda-corpo do quarto escuro.

K.M.

LONDRES

O nível do meu discurso era sempre tão alto quanto o permitia a audiência, e ao me dirigir à ela especialmente eu exercitava minha verve com a mesma rapidez com que avançávamos ------, Napoleão, Julien Sore, o ''jeune ambitieux'' de Balzac, o retrato de Luís Bonaparte de Marx, o Indivíduo Histórico Mundial de Hegel. O Indivíduo Histórico Mundial era uma dos meus prediletos, o intérprete do Espírito, o guia misterioso que impunha à humanidade a tarefa de compreendê-lo. E eu havia transformado o assunto numa pauta recorrente, de alcance cósmico, mas ao discuti-lo de novo a cada vez, emprestava-lhe uma inventividade peculiar e uma energia maníaca; também uma explícita paixão pelo complicado e pelas insinuações e significados duplos e Finneganescos. ------ Especialmente no meu papel de protetor, não tinham porque ficarem magoadas comigo (.) ---- , pensava eu (depois) naquela rua óssea onde eu descia do ônibus em Londres como um ator, um lord, um fantasma disponível diante das infinitas paisagens-porta do bairro escuro; paisagens-porta e paisagens-janela; na distância, uma torre horizontal marchava com pulmão de aço aberto; moles imensas de tijolos, escadarias, parapeitos, pontes, antros, homens de bronze, o compasso do pânico: ----Você não está magoada comigo, está (?) ----, me perguntava de novo, uma série infinita de pequenas visões confusas explodindo na realidade, acima e abaixo do rio. Segundo Rimbaud: ''Um Nabucodonosor norueguês ordenou estas construções, muitas com partes inexplicáveis''. De repente, sóis (ou girassóis?) de Turner afundam-se nas águas oleosas do Tâmisa: este é o território do carvão e da névoa célebres, oposto à linha mediterrânea que vinha conferindo identidade ao meu latim escolar. ''Para o estrangeiro de nosso tempo, o reconhecimento é impossível: não se vêem as lojas, mas a neve das calçadas está esmagada; alguns nababos se dirigem para uma diligência de diamantes; e há alguns divãs de veludo vermelho: -- Por um preço que varia de oitocentos a oito mil rúpias, servem-se bebidas polares (eu a informava) a as lojas devem conter dramas bastante sombrios; e penso que há inclusive uma polícia(!), mas a lei deve ser de tal modo estranha que me recuso a fazer uma idéia dos aventureiros daqui (.) --, os subúrbios de Londres, atravessados de trem, eram favorecidos por um tênue raio luminoso naquela momento, Mas o elemento democrático (ela me chamou a atenção) limitava-se a apenas algumas centenas de almas (uma potência bíblica desencadeando greves de estivadores, fazendo parar o porto movido pelos sindicatos, certo monstro escapado do Livro de Jó, talvez do livro de Mélville, arbitrário povoava os espaços noturnos; seus dentes de ferro deglutiam bandos de londrinos e londrinas distraídos pela Premier League, provocavam a insônia da Scotland Yard. Circulavam milhões de transeuntes , indicando que aquele dia não era domingo e que nem todos ali haviam sido inventados por Shakespeare. A dimensão daquela enormidade advertia nossos pulsos. Ordem planificada pelo caos. -- Quantas Londres desova por toda parte de Londres esta única e úmida Londres(?) -, ela me perguntou.

K.M.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

THAUMADZEIN

O desejo de mandar, de
dominar e não ser dominado,
sem risco de raio ou curto-circuito 
extraído da vida doméstica
e transposto para a esfera política.
O CORPO está todo ali, em
riste, feito uma garra fechada;
a família atrás, encolhida,
apenas toca a corda de um arco
que não dispara: ação hesitante,
dir-se-ia um vibrato de ação,
numa velocidade autolimitante
que não se alimenta de nada visível.
O CORPO, então, sitiado
por si próprio, crava os olhos
na própria casca, disparando,
dos nervos, um projétil ventilado,
transvalorado em alta velocidade,
devorando cada palavra certeira
que sai da própria boca, em fuga.
A audiência recebe o impacto na cara
enquanto celulares batem punheta nas bolsas.
Do animal nietzscheano ''capaz de prometer'',
no palanque, restam agora apenas
os fios de um interesse suspenso
e os vapores e um metal torcido pela voz.
Dentro de um instante, telefonemas instintivos
surgirão para morder o cuspe
que restou secando sobre o palco
e bichos raivosos atolarão no seu rastro,
forçando os maxilares num esboço de decisão.
O resto do dia será didicado a
abater sentidos de urgência
com estrondos de portas conferenciais.

K.M.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

''A graça de uma entrevista ? ''


Winner continuava sorrindo para cima. Mathieu cuspiu o chiclete e ficaram os dois olhando o céu negro da noite, o caminho e limalhas de prata, a insistência das estrelas isoladas que exigiam ter um NOME. No dia seguinte, à dez da manhã , Winner bateu à porta da Gerência Geral e avançou intimidado , sorridente, expondo à luz um olhar meio cinzento (ou era uma luz cinza e desanimada que insidia sobre ele, uma luz que chegava vencida depois de atravessar nuvens gigantescas de água e frio , o tempo se havia decomposto , um vento indiferente entrava assobiando por todos os buracos do edifício até os tímpanos).

Mathieu ergueu a cabeça por entre pilhas de pastas e ficou farejando, sem carinho, aquele ar do ambiente, a zombaria, o jogo , o desespero encoberto .

''Com licença '', disse , e se inclinou, batendo um tênis contra o outro perto do sinal de trânsito. 

''Ele só queria uma entrevista . Ele é o Gerente Geral. '', sugeriu Winner.

''A graça de uma entrevista ? ''

''Já se consideram em condições de documentar o evento. E essa é a palavra justa : DOCUMENTAR. A VERDADE DE CERTAS AFIRMAÇÕES VERBAIS.'.

Winner contraiu a boca e o ombro, olhando para Mathieu. Houve um silêncio, um rancor, um desconsolo . Saindo das duas voltas do cachecol avermelhado e desbotado , a cabeça do homem não parecia bêbada nem agressiva. Só que ele , aparentemente, não servia para aquilo que recitava tão penosamente, e nada era mais triste que a escuridão imóvel de seus olhos.

''Pode vir quando quiser '', disse Mathieu , mostrando-lhe os dentes com insolência. ''MINHA SALA ESTÁ SEMPRE ABERTA ''

Winner assentiu em silêncio, enquanto o francês deu meia volta e saiu. 

''What could she say to the fantastic foolybear ????? '', pensou, sempre jogando, estremecido de esperança, de energia, de sanha, quase jovem como ela. ''And what could she say to brother ?????, And what could she say to the cat with future feet ?????'' .

O vento sussurrava nos papéis cáidos no chão.

... to taste still hot upon the ground.

''Não sei francamente que lado tenho que escolher para cair parado '', pensou Winner, sentindo-se mil vezes mais infantil que o Winner que voltava para a mesa do hotel para jogar agora.

Havia mil novas maneiras de intervir e apontar a possibilidade de se tirar proveito sem criar uma ruína, sem comer o capital, como o Mercado vinha fazendo naquele exato instante, diante da máquina de música.

K.M.

NEGÓCIOS E POESIA

''A relação entre negócios e poesia '', ela disse ''Naturalmente, falo em grandes negócios, negócios mundiais, que fui destinada a gerir devido ao meu nascimento ; eles são SEMELHANTES À POESIA, seja , que tbm tenham lá aspectos irracionais tanto faz, pois há mesmo aspectos místicos muito mais importantes que estes . E eu até gostaria de dizer que meus negócios especialmente têm este aspecto. O dinheiro é um poder extremamente apressado, segundo percebemos toda hora. 

Winner sentiu novamente um súbito calafrio , que lhe pareceu vir diretamente do imperialismo econômico. Não era exatamente enganoso pensar assim, segundo o dialeto necessário para se expressar os melhores argumentos, tão evidentemente sinceros que não se conseguia mais, naquele momento, levar vantagem sobre Winner. 

''Diga apenas um quarto do que for dizer da próxima vez '', sugeriu Winner aos presentes na sala, '' caso realmente queiram se aproximar mais da verdade'' .

Santo Deus, mas ninguém ali estava cogitando ou julgando essa possibilidade. Ouviu-se uma batida na porta.

Era Mathieu.

''Boa noite, Winner, Miss Morrisey, e companhia . Não se importem se eu estiver parecendo com pressa '', ele disse, procurando uma cadeira para sentar-se.

''Selfmademan... '', disse Winner para Mathieu ''Eu tbm frequentei apenas duas séries de uma escola de comércio, mas com um só olhar entendo as mais complexas situações do mundo, e sei tudo o que preciso saber, mais depressa que as outras pessoas''

''Eu estudei economia política e toda sorte de ciências, muitas das quais inteiramente desconhecidas hoje em dia, e não conseguem explicar como faço isso, ou porque nunca falho em nada''

''Não há mistério, Mathieu ''

''É o segredo de um vida enérgica, simples, grande e saudável (!) ''

Certamente , aviva energia que Winner e Mathieu mais tardem sentiram em Miss Morrisey, diferia da admiração que alimentavam pelo resto do clube. Essa vez, a coisa começou com interesse puramente mental nos assuntos do clube .

''Um magnetismo imediato e leal ''.

''Um pequeno cosmos '.

''Praticamente não há um aspecto da vida ao qual essa engrenagem não esteja ligada''

A firma, segundo Winner, ainda estava naquela disparada para o alto do início meteórico, ao qual Miss Morrisey viera agregar um ar heróico. Apesar de todo o sucesso, tbm para os negócios de Miss Morrisey havia uma misteriosa avenida de crescimento, como para tudo o que era orgânico . 

''Sei, Uma vida cheia de mistérios desses '', assentiu Mathieu.

''Como não ? '', disse Winner.

Miss Morrisey sentiu-se impressionada pela viva convicção de Winner

K.M.

O EMPREENDIMENTO PATRIÓTICO


Pronto ---- Winner disse à loira cor de alface, em tom triunfante --- Como vê, é tudo seu (.) 

''Querido, nem por um segundo eu duvidei disso '' , disse ela, admirando-o ''Quero que saiba que sou muito sincera, e orgulhosa de todas as minhas medidas . Bem, naturalmente, pode perceber porquê. Não preciso recuar bem os ombros e respirar fundo, como algmas outras que eu poderia nomear com facilidade''

Winner pensava que esse era seu plano e o dela, pois os dois sempre acreditavam em muitas coisas ao mesmo tempo

O wísque era dourado com ouro , e aqueceu o frio sol de...
''Expliquei-lhe que singularmente '', disse Mathieu para Winner '' que eu havia escolhido uma profissão muito ''abstrata '' e ''conceitual'' , e que por mais talento que tivesse para ela, mesmo assim estava arriscando-me ao apresentar-me como ''cientista'' , pois meu verdadeiro talento , ainda que isso possa assustar, está inquestionavelmente n terreno da ação e da atuação pessoal''

''Mas ela talvez ache que ninguém tem menos talento para tratar de si mesmo do que você , moço '', disse Winner, acendendo um cigarro. Estava novamente debochando do amigo ao invés de dedicar-se à edificação meticulosa de seus argumentos.

''E devemos pensar que , enquanto isso , a terra está sendo textualmente dividida não em dois ou tres blocos, mas numa colméia de aplicação imediata de pensamentos

Mathieu não queria levar nenhuma intriga adiante.

Winner elogiou-o depois, chamando -o de ''pessoa muito ativa'' , apesar das críticas. Via diante de si agora, passado tanto tempo trabalhando juntos, um espírito burguês perfeitamente civilizado e equilibrado , aplicando eficazmente suas MELHORES ENERGIAS na busca do contato com pensamento s nobres , a excitação e subserviência do orgulho ----- essas excursões de Mathieu (pensava Winner ) não serviam apenas para diversão dele, do próprio Mathieu e do público em geral, mas tbm pretendiam conquistar a participação de pessoas muito influentes e ricas no EMPREENDIMENTO PATRIÓTICO.

K.M.

Ô BÊTE (!)

Je ne viens pas ce soir vaincre ton corps,
Ô BÊTE (!)
Only the landscape is changed
They still are ranged along the roads
plagued by legionaires
false windmills and milk-shakespeares
They are the same people
only further from home
on freeways fifty lanes wide
on a concrete continent
spaced with bland billboards.
----- The scene ---
she said
---- shows fewer tumbrils ----
Je fuis, pâle , défait ,
hantê par mon linceul ,
Ayant peur de mourir
lorsque je couche seul.

K.M.

''Um pouco de rodeio às vezes ajuda... ''

''Se eu fosse um político ou coisa parecida'', Winner pensava ''Jamais seria esquecido, mas sou um escritor, e de um sujeito com essa profissão espera-se qualquer coisa ''. Winner lembrou-se, de repente, e de forma involuntária, que quando alguma mulher o acusava de ser um sociopata incontrolável, ele se limitava a responder : ''Um pouco de rodeio às vezes ajuda... ''

(.)

----- O PIOR ACONTECE QUANDO OS ESPAÇOS DE BAIXO QUEREM COMANDAR E VIOLENTAR OS ESPAÇOS DE CIMA (.) -----, Winner disse, convencido de que as relações cacofônicas entre Sociedade e Mercado, Mercado e Estado, Sociedade e EStado, enfim, as configurações sociológicas que, quase com certeza, engendram o Mal, sufocavam diariamente a invenção ontológica primordial dos indivíduos, esmagando a vida da sociedade. ----- O MAL PROVÉM DO DESEJO DA TERRA DE COMANDAR O TERRITÓRIO, QUANDO AS TRIBOS DILACERAM-SE PELA POSSE DO ESTADO, QUANDO OS CHEFES DE CLÃS SÃO TRANSFORMADOS EM CHEFES DE GOVERNO. O MAL DECORRE DA VONTADE DA TERRA DE SUBMETER A MERCADORIA. QUANDO A INDÚSTRIA E O COMERCIO FICAM NAS MÃOS DE CLÃS, QUANDO A PREDAÇÃO PURA E SIMPLES SUBSTITUI A TROCA HONESTA E PRODUTIVA. A MÁFIA REINA NO SUL. OS LIBERAIS REINAM NO NORTE. ENQUANTO ISTO, O BANDITISMO ONTOLÓGICO SE ALASTRA PELO ESPAÇO DO SABER, VÍTIMA DE DISTORÇÕES E APROPRIAÇÕES INDÉBITAS.... PARA NÃO FALAR NO IRRACIONALISMO MILITANTE.

(.)

As primeiras noites na clínica psiquiátrica foram tranquilas. O pessoal demitido ainda desempenhava suas funções e os novos limitavam-se a olhar, a recolher experiência e a reunir-se na farmácia , onde Albertine aparecia de vez em quando (de acordo com a memória liquefeita de Winner ) vestida de branco, onde os dois voltavam a descobrir, emocionados , as emulsões e os barbitúricos. O problema ali era conseguirem ficar a sós por tempo o suficiente. Winner, numa daquelas noites, instalara-se solidamente no escritório do Supervisor, já que percebera que a noite, e não o dia, é que eram reais, e assim decidiu-se, em definitivo, a impor sua autoridade dentro daquele hospício. De fato, a autoridade ali dentro parecia invertida , e realmente era psicologicamente ''invertida'', uma vez que a opressão vinha dos pacientes mais perdidos, como Winner, e não das autoridades do hospital. Albertine escutara atenciosamente o New Deal de Winner. Ele resumira seu manifesto pessoal em termos de higiene,disciplina alimentar , deuspátrialar , tantrismo e pijamas cinzentos, e... chá de tília. Albertine prestou bastante atenção também aos diálogos operacionais entre os membros do ''novo regime''. Albertine, Winner recordava-se vagamente, entre um e outro cigarro, merecia sua confiança,mas quando tentava se lembrar porque, só se lembrava de um navio avançando através do oceano . A moça tinha seu diploma de silêncio interior, o que a obrigava, por vezes, a debater ''cornelianamente'' os deveres e os sentimentos patrióticos, enquanto Winner organizava a nova administração. Experiente, Winner não demorou a começar a substituir os ''engole-espadas '' do primeiro e segundo escalão por autênticos esquizofrênicos com firma reconhecida no cartório, e rações de pasto , opióides e insulina. Winner decretou que o tratamento por eletro-choque tornava-se, a partir daquela noite, um ''rito de passagem '' da ''nova civilização'' que começava a se organizar em torno dele.

(.)

Na verdade , Winner nada poderia contar para.. . Se começasse a desenrolar aquele novelo , sairia um fio de lã, metros de lã, lanada , lanagnórise, lanaturner, lanapurna, lanatomia, lanata , lanatalidade , lanacionalidade , e lã até a lanáusea, mas nunca o novelo . Teria sido necessário fazer com que Traveler suspeitasse de que o que lhe contara não tinha sentido direto (mas que sentido tinha ? )E teria sido necessário fazer com que o Capitão suspeitasse de que o que lhe contara não tinha sentido direto ( mas que sentido tinha? ), de novo ? , e que também ele, Winner, não era uma espécie de figura lunar ou alegoria. A diferença inexplicável, um problema de níveis que nada tinham a ver com a inteligência ou a quantidade de informação, e no entanto, Winner fazia parecer com que sim , parecia uma questão de raciocínio dedutivo , mas 

''uma coisa era jogar truco 
outra discutir John Donne
com Traveler''
(J.Cortázar)

Tudo transcorria num território de aparência bizarramente comum. 


K.M.

Cálculo elevado ao grau de mistério.

Peço desculpas à leitora, prometendo não repetir isso (afinal, boas leitoras não lêem ficção para aguentarem as desculpas de um autor). Direi apenas que , tendo lido os melhores e os piores romances durante muitos anos ---- o que faz parte, lembro a leitora, da boa educação de qualquer demônio ----, sei agora que nem mesmo uma leitora leal pode se manter fiel à um autor disposto a deixar sua narrativa em troca de um expedição sem nenhuma relação aparente com o tema principal . Mas um outro e bem mais extravagante fenômeno se apresente hoje à nós : enquanto as obras de arte se tornaram inteligíveis a nós apenas através do confronto com sua sombra , para avaliar a beleza dos objetos naturais (como o próprio Kant já havia intuído ) não tínhamos até agora nenhuma necessidade medí-los com seu negativo . Assim, certamente não ocorreu a ninguém perguntar até então se um temporal ou um terremoto tinham sido mais o u menos bem-sucedidos ou se uma flor era mais ou menos original que outras, porque por trás de uma produção natural nosso juízo estético não distinguia a estranheza de um princípio formal, ao passo que tal pergunta se apresentava a nós diante de um quadro, um romance ou qualquer outra obra do gênio. Mas a obra de arte contemporânea, de fato , e de modo cada vez mais frequente , nos apresenta produções frente às quais não mais é possível recorrer ao tradicional mecanismo do juízo estético, e para as quais a dupla antagonista Arte - Sombra da Arte parece ser inadequada. Diante de um ''ready-made '', por exemplo , no qual a estranheza do princípio criativo-formal foi substituída pelo estranhamento do objeto não artístico que é imerso à força na esfera da arte , o juízo crítico se confronta, por assim dizer , imediatamente consigo mesmo, ou para ser mais preciso ,com a própria imagem invertida : o que ele deve reconduzir à Sombra da Arte, de fato ,já é por si mesmo Sombra da Arte e sua operação se exaure, assim , em um mera verificação de identidade. A arte contemporânea, nas suas mais recentes tendências , levou esse processo ainda mais longe e acabou por realizar aquele supremo ''reciprocal ready-made '' em que pensava Marcel Duchamp quando sugeriu usar um Rembrandt como mesa de passar roupa. Identificando cada vez mais a obra de arte com um produto não artístico, e tomando consciência da própria Sombra , a Arte acolhe , assim, imediatamente em si a própria negação e, superando a distância que a separava da atividade crítica,torna-se ,ela mesma, o LOGOS da ARTE e sua SOMBRA .

Post Scriptum


---- Certamente vais aprovar que cheguemos ao fim da nossa conversa e a uma decisão satisfatória (.) ----, eu disse à B. ----- Espero que você fique reconhecida por esses solos de violoncelo e violino(: tu és sem dúvida um caso muito atraente, como admito sem rebuço ( naquele momento, ela parecia não se dar conta da minha abrupta metamorfose) : desde cedo pus os olhos na tua ágil e arrogante cabeça , no seu virtuosismo, no teu magnífico ''ingenium'' e memoriam''(... apaixonei-me(.) ----, concluí. ----- Então te deixaram estudar a ciência de Deus a fundo (ela respondeu), assim como tua soberba pretendia(... certo(?) mas logo se livrou da pecha de teólogo, depositaste debaixo do banco a Sagrada Escritura, e a partir de então te apegastes ardentemente aos ''characteribus'', ''figuris'' e ''incantationibus'' da Música, o que por sinal foi o que nos aproximou tanto(: sua presunção almejava as coisas elementares, no início, que pensava poder obter pelo modo mais próprio à tua índole espinhosamente camaleônica, lá onde elas, sob a forma da magia algébrica, casam-se com a adequada inteligência calculadora e todavia vão contínua e atrevidamente de encontro à razão e a sobriedade(: eu já imaginava que alguém como você devia ser excessivamente sagaz e entusiasmado para o Elementar, vossa sutileza atrasou a coisa, a iluminação, o ''aphrodisiacum'' do cérebro , excessivamente literário, de corpo e alma, para o intelecto musical que desesperadamente buscavas, desde o início(.) ----, essa conversa de agora era apenas ratificação e volúpia

K.M.

''S´ÉTONNER DE CE QU´ILS SONT HABILLÉS COMME TOUT LE MONDE '' .

Se, como espectador moderno , o homem de gosto do século XVII considera, no entanto , uma prova de mau gosto o intrometer-se nisso que o artista compõe ''por capricho e por gênio'' , isso significa, provavelmente , que a arte não ocupa na sua vida espiritual o mesmo lugar que ela ocupava naquela de Clemente VII ou Júlio II . Frente a espectadores que, quanto mais refinam seu gosto , tanto mais se tornam para ele semelhante a um espectro evanescente , o artista se move em uma atmosfera sempre mais livre e rarefeita, e começa a migração que , do tecido vivo da sociedade, o empurrará para a hiperbórea terra de ninguém da esteticidade , em cujo deserto buscará em vão seu alimento e onde acabará por assemelhar-se ao Catoblepas da Tentação de Santo Antônio. , que devora, sem se dar conta disso , suas próprias extremidades . Enquanto, de fato , vai se difundindo cada vez mais na sociedade européia a equilibrada figura do homem de gosto , o artista entra em uma dimensão de desequilíbrio e excentricidade, graças à qual , através de uma rápida evolução, chegará a justificar '' l ´idée reçue '' que Flaubert registrava em seu ''Dicionário '' * junto ao termo ''artista'' : ''S´ÉTONNER DE CE QU´ILS SONT HABILLÉS COMME TOUT LE MONDE '' . Quanto mais o gosto procura libertar a arte de toda contaminação e de toda ingerência, tanto mais impura e noturna se torna a face que ela volta para aqueles que devem produzí-la. 


*

A partir de 1850, Gustave Flaubert começa a dar forma a seu ''Dictionaire des idées reçues '' que ele chama também de ''Catalogue des opinions chic '' e que agrupa definições e aforismas de sua lavra . Uma maneira de debochar disso que se chamaria hoje o pensamento ''prêt à porter '' , ou ''opiniões prontas '' . 

,

J'ai résolu de vous donner une heure de littérature nouvelle.
Je commence de suite par un psaume d'actualité :

''Les jugements sur la poésie ont plus de valeur que la poésie''

Como levar a sério esta frase do Conde de Lautréamont ? Mas enquanto teimarmos em ver nela uma simples ''raillerie'' incompreensível , não perceberemos que sua verdade está inscrita na estrutura mesma da sensibilidade moderna.

K.M.

''Escritura hechizada ''

Quando ouso pousar os olhos em uma superfície brilhante de neve , dou-me conta de um padrão fixo de mínimas miragens ópticas ---- nódoas de minha vítrea disposição de ânimo semelhante a micróbios congelados --- que sempre flutuam , em geral despercebidos, no campo da minha terceira visão . Esses inorgânicos, ou aliados, também fazem parte das tensões do meu Eu. E todos os bytes casuais de recordações espontâneas também fazem parte do meu Eu, assim como aquela voz repetitiva que , com suas ficções recompostas indefinidamente e suas recordações indistintas, faz-me companhia durante a insônia hiper-ativa e possui uma inteligência tão sedutora que por vezes eu não me nego a ver no meu próprio Eu apenas um pólo X que serve como suporte de todos os fenômenos psíquicos e poéticos do mundo. E eu jamais permaneço indiferente a esses estados , muito pelo contrário , eu os sorvo e os coleciono avidamente, como um vampiro, permanecendo comprometido com eles como um suporte super-consciente e alerta : uma totalidade concreta que contém e suporta suas próprias qualidades. Sinto não ser nada fora da totalidade concreta dos meus estados e ações além de consciência e intento puro , deslizando por um infinito volátil de dados ... nul signe de tailleur : chaque matin de la terre ouvrait ses ailes au bas des marches de la nuit . Sem dúvida (eu pensava ) sou transcendente a todos os estados que unifico, mas não como um X abstrato cuja missão é somente unificar . A totalidade infinita dos estados e ações só se deixa reduzir à um único estado e à uma única ação no samadhi, a identificação suprema da mente com seu princípio criador . Quando assino meu nome , por exemplo , e o tenho feito com frequência em livros e páginas , acho cada vez mais difícil ir além do K ou do K.M. ---- alguma coisa no ritmo do meu ‘’K.M.’’ tradicional impõe-me de repente uma pausa forçada , um congelamento dos meus músculos motores, geralmente no alto do ‘’M’’ , ou ao pé do ‘’K’’ isolado , de modo que a tinta da caneta, se liberada por uma ponta sensível , começa a sangrar , a esboçar uma estrela azul e a vazar do outro lado do papel . Essa hesitação espontânea, quase mística (penso) , no que deveria ser uma assinatura praticada com fluência (ma tombe et mon retour) penso que é também meu Eu . Uma falha que denuncia meu ser profundo, como uma fratura na camada de gelo da Antártida que revela um celeste azul alarmante na parte mais profunda ----- o alicerce rochoso, o pedregulho radioativo, por assim dizer, sob a tênue luz imaterial do meu desempenho literário e filosófico, social e tântrico . Então o Mundo, desse ponto de vista, passa a ser concebido como uma totalidade sintética infinita de todas as coisas ; um Mundo que alcançamos além de nosso contorno imediato como uma vasta existência concreta . Nesse caso , as coisas que nos rodeiam aparecem como o extremo ponto desse Mundo que as sobrepassa e as engloba . E o Eu se torna para os objetos psíquicos aquilo que o Mundo é para as coisas . Mas a ‘’aparição ‘’ do Mundo no ‘’horizonte das coisas ‘’ é um fenômeno bastante raro, quase uma iluminação e, em caso de um despertar maior, quase uma ‘’iniciação coletiva ‘’ ; mas se necessitam circunstâncias especiais (bastante bem descritas por Heidegger em Sein und zeit ) para que ele se ‘’desvele ‘’ . O Eu , pelo contrário , está sempre no horizonte de nossos estados , cada estado ou ação não podendo ser separado de nosso Eu . E esse caráter duvidoso do Eu, de presença pegajosa , não significa que eu tenha um ‘’Eu verdadeiro’’ (Moi) cuja existência ignoro , apenas que o Eu intencionado traz em si mesmo o caráter da dubiedade ( e em certos casos, da falsidade). Le sol qui recueille n ´est pas seul à se fendre sous les operátions de la pluie et du vent . Ce qui est précipité , quasi silencieux , se tient aux abords du séisme , avec séches paroles d ´avant-dire , pénétrantes comme le trident de la nuit dans l´iris du regard ... a hipótese metafísica de que o Eu não se comporia de elementos realmente existentes (há dez anos ou um segundo ) tampouco pode ser excluída ; esse poder do Genio Maligno se estende até aqui . Sinto que quando incorporo meus estados de consciência à totalidade concreta do meu Eu , não lhe agrego nada . Isso acontece porque a relação do Eu com suas qualidades, estados e ações , não é uma relação de emanação (como a relação da consciência com os sentimentos ), nem uma relação de atualização (como a realização da qualidade em um estado ) ---- a relação do Eu com suas qualidades, estados e ações é (isso sim ) uma relação de produção poética, de criação . O Eu se dá na produção desses estados, sejam mais ou menos intensos. ‘’Ce qui est précipité, quasi silencieux, se tient aux abors du séisme ‘’. O Eu mantém suas qualidades por uma verdadeira criação contínua . E se por acaso apareço sempre além de cada qualidade minha ou mesmo de todas , é porque meu Eu é como um objeto opaco : seria necessário desnudá-lo infinitamente para privá-lo de toda sua potência ; e no final desse desnudamento, não haveria nada, o Eu teria se desvanecido no Céu da iluminação, e a consciência teria adquirido o boleto de impecabilidade do ser essencial para a vida eterna . A Bíblia , no entanto, fala muito pouco sobre o Céu, afora as meditações extensas de Ezequiel e os vislumbres da cidade cristalina com ruas de ouro no 21 do apocalipse. Os fundadores da fé cristã não ignoravam , mesmo em seu cosmo relativamente ingênuo, a potencialidade de absurdos póstumos ; Jesus havia rechaçado a pergunta dos saduceus sobre as perplexidades da pós-ressurreição dos ‘’casados muitas vezes ‘’ (Marcos 12: 8-27 – Mateus 22:23-33 – Lucas 20 : 27-40 ), e Paulo , ao explicar a seus captores em Cesaréia que Cristo era o primeiro de muitos a erguer-se de entre os mortos , ouve do magistrado romano que muito saber o havia enlouquecido (Atos 26: 23-24 ). Mas a igreja , ao atingir a ortodoxia , passou a insistir, com uma firmeza não menor que a do materialismo moderno , que ‘’o corpo é o Eu ‘’, e deixou-nos com um dogma, a ressurreição dos mortos , que se tornou algo inconcebível na imaginação da degradação evangélica posterior. O Eu é o criador de seus próprios estados e sustenta suas qualidades na existência por uma espécie de espontaneidade conservadora . Obviamente , não se trata de ‘’responsabilidade ‘’ ou ‘’compromisso ‘’ , mas de um processo mágico (sempre com um fundo de ininteligibilidade ) de ''escritura hechizada '' , conduzida visceralmente pelo desejo . Trata-se então de um pseudo-espontaneidade que encontraria seus símbolos convenientes na emergência de uma fonte, de um geiser, etc . Na passagem de si mesmo para outra coisa , o que supõe que a espontaneidade escapa constantemente de si mesma e vira outra coisa . A espontaneidade do Eu , embora não possa existir por si mesma , como um inorgânico, possui porém uma certa independência em relação ao Eu, de modo que o Eu se encontra sempre encoberto pelo que produz , apesar de que , de um certo ponto de vista, ele ''seja '' o que produz . O laço com que o Eu reúne seus estados permanece sendo ''ininteligível ''... digamos : esotérico . Toda tentativa de ser explícito sobre o ''Ponto de Aglutinação '' da consciência estarrece-nos . O ''Eu essencial '' é um punho luminoso do tamanho de uma bola de tênis, flutuando a dois braços de distância na altura das omoplatas. Notre parole , en archipel , vous offre , aprés la douleur et le desástre, des fraises quélle rapporte des landes de la mort , a insi que ses doigts chauds de les avoir cherchéés . Nessa época medicamente engenhosa que já levou a cabo muitas ressurreições práticas reais , os testemunhos daqueles que retornaram do Além , os relatos de suas E.Q.Ms , de túneis irradiantes e e sensação de amor difusivo imaterial , caracterizam-se por um tipo de banalidade de muito mau gosto , quase tão detestáveis quanto as ''canalizações'' e as ''mesas brancas ''. Na verdade , é toda essa pseudo macumba esotérica da internet que autoriza um autêntico nirvani como eu , um Mestre do samadhi , a simular desavergonhadamente o ''romancista ateu '' do racionalismo francês só para incorporar toda essa histeria charlatã de forma humorística. Os cérebros das pessoas deixaram de ser condicionados pela reverência e o temor religioso . Ninguém mais é capaz de imaginar um Segundo Advento que não seja reduzido ao formato do noticiário noturno da televisão . Algo talvez parecido com o que sucedeu com os mestres do estruturalismo : Lévi-Strauss na antropologia ; Lacan na psicanálise ; Foucault na filosofia ; Barthes na linguística-poética. Por um fenômeno tipicamente francês, esses nomes-obras foram captados pela imprensa de massas e pela televisão , de modo que um vasto público familiarizou-se , então , com o jargão desses especialistas ; os rostos dos mestres tornaram-se familiares para os espectadores de televisão e para os leitores dos grandes jornais franceses ; seus seminários tornaram-se grandes acontecimentos mundanos , shows quase tão disputados quando os do show business. O sucesso era tamanho que outras estrelas ascendentes tbm começaram a oferecer shows particulares : Derridá, Deleuze , Kristeva , Todorov , Greimas , Lyotard, Morin ( boa parte do público desses seminários era latino-americano , e os maus momentos por que passavam, sucessiva ou concomitantemente, os países das Américas Central e do Sul naquela época , transformou muitos brasileiros em ''brésiliens '' ---- houve um momento, inclusive , em que muitos desses mestres contavam e comparavam entre si o número de seus respectivos ''brésiliens '' , numa espécie de teste de popularidade . A linguística estrutural de Saussurre e a linguística transformacional de Chomsky ; o formalismo russo dos anos 1920 e a nova semiótica soviética. A antropologia de lévi-Strauss e a psicanálise de Lacan renovadas pela linguística de Jakobson . As novas teorias da informação e da comunicação permitindo uma nova leitura dos textos literários, assim como dos textos políticos e publicitários. Estruturas. Sistemas. Signos . Códigos. Processos. Significações. Ben trovate ! , que em pouco tempo isso tudo já se tornara o sonho megalomaníaco de uma decodificação geral dos sistemas e signos ; e como toda manifestação humana é um ''sistema de signos '' (e agora voltamos ao assunto ) imaginou-se então também uma ciência geral da narrativa , que se encaixaria numa ciência geral das artes , que se encaixaria numa ciência geral da linguagem, abarcando tanto a sociedade quanto o inconsciente . Essa mesma ânsia de totalização do pensamento esteve presente no projeto filosófico de Heidegger, enquanto o filósofo alemão adaptava sua terminologia única aos dispositivos do Reich, com Sein und Zeit . De fato (eu pensava ) a consciência projeta sua própria espontaneidade silente no eu para conferir-lhe o poder criador que lhe é absolutamente necessário . É claro que (tudo na vida tem seu preço ) esta espontaneidade , representada e hipostasiada no eu , devém uma espontaneidade bastarda e degradada , que conserva magicamente sua potência criadora ao mesmo tempo que se faz passsiva. E conhecemos bem outros aspectos degradados da espontaneidade consciente . Não citarei mais que um : uma mímica expressiva e fina pode entregar-nos a ''Erlebnis '' de nossa bela interlocutora com todo seu sentido , todos seus matizes , todo seu ruivo frescor . Mas a imagem nos chega espiritualmente degradada pelo fundo passivo da distância. Ficamos assim rodeados de objetos mágicos que guardamos como uma lembrança da espontaneidade da consciência, mesmo sendo objetos do mundo . Essa é a principal causa que faz de um indivíduo um ''brujo'' para os outros : esta ligação poética de duas passividades , das quais uma cria espontaneamente a outra ----- não é outro o fundo mesmo de toda ''brujeria'' , o sentido profundo da ''participação '' espectral . E é por isso também que cada um de nós é ''brujo'' de si mesmo cada vez que consideramos nosso Eu ''em jogo '' .

K.M.

Colapso organizacional.

Agora era natural que nos perguntássemos que tipo exatamente de obra seria necessária para acalmar nossas preocupações ... Meu peito passara a inflar ao longo dos dias de trabalho com um velho truísmo organizacional e eu repetia para mim mesmo : '' O bom sangue alemão entende que as bênçãos não vem de Deus, mas sim do trabalho duro '' . Ainda assim, aquela não era uma observação nem muito boa, nem muito exata. O trabalho duro era o de menos, comparado com o trabalho de uma verdadeira inteligência. Além do mais, porque não falar também do sangue austríaco ?? A questão passou a incomodar-me além da conta, certo ? Um determinado sangue possuía virtudes próprias ? Porque diabos elogiar o alemão ? porque não o austríaco ? Eles tinham o imperador que podia conviver com problemas enormes e, com frequencia , idiotas, como manter tchecos, húngaros , italianos, poloneses , judeus e sérvios, além dos ciganos , vivendo em paz dentro de um único império Habsburgo. Mas os alemães nunca conseguiriam fazer isso.  Sempre em querelas  eternas. Sem Bismark nunca teriam sido nada. Principados insignificantes. O rei Ludwig e o rei louco Ludwig II, ambos bávaros doidos. E os prussianos piores ainda. Em todo caso, um belo enigma. Além de uma ocasião para o exercício do bom gosto, na medida em a idéia de gosto passa a se tornar mais precisa para nós, e com ela , aquele gênero tão particular de reação psíquica que levará à formulação de Kant daquele mistério da sensibilidade moderna que é o juízo estético. De repente, a fantasia criativa dos artistas passa a não tolerar mais nenhuma imposição ou limite, ao passo que aos ''não-artistas'' resta apenas ''spectare'' apreensivamente.  Um multidão de súditos transformada em meros ''partners'' do delírio global de um único indivíduo em transe; multidão sempre menos necessária e mais passiva, no limite de um círculo mágico no qual não arriscam entrar. É evidente que o trabalho de reinvenção do artista, nesse caso, apresenta-se como um a trilha acidentada e que muitos são os colapsos ao longo de seu percurso, o que espanta a multidão além da conta : a ameça de desintegração dos sistemas, a impossibilidade de cumprimento dos prazos e as dissidências aparentemente irreparáveis. A multidão concluindo que eu sabia alguma coisa que ninguém sabia. Certamente: EU SABIA O TEMPO TODO.  Um belo enigma .. mas eu estava pensando agora mais como um filósofo do que como um poeta.  E meus discursos diários me permitiam sentir-me belo, secreto e diabólico. Com um domínio absurdo do alimento universal. Pensava (inclusive) nos colapsos presentes de outra forma. Como colapsos organizacionais que ensejavam que a organização do trabalho e dos indivíduos se analisassem com maior rigor e perdessem o medo de afrontar a necessária tarefa da reinvenção o quanto antes. Do contrário, o preço seria a paralisia total do reino. Transformar o colapso em parte de um projeto, para que ele não diluísse o trabalho do desespero numa semeadura aleatória de declarações apreensivas. A invenção de um futuro aparentemente impossível, e o gerenciamento do colapso presente a partir dessa idéia impossível do futuro , implicaria na semeadura do caos concreto . Mas nossa moderna educação estética (é verdade) nos acostumou a considerar normal essa atitude e a reprovar qualquer intromissão no trabalho do artista de gênio , como uma indevida interferência em sua liberdade de ação ; e, certamente, nenhum mecenas moderno ousaria se intrometer na concepção e na execução da obra encomendada atualmente. Em todo caso , a equipe gerencial agora precisava identificar novas competências essenciais ou mesmo construí-las : os pontos fracos das capacidades existentes e os projetos que, caso empreendidos a tempo , reforçarão a musculatura do empreendimento.  A propósito, é notável o que se pode ler em ''Art and Anarchy '',  de Edgar Wind , quando ele diz que os grandes mecenas do Renascimento foram exatamente aquilo que nós acreditamos hoje que um mecenas não deve ser, isto é, ''parceiros incômodos e inábeis '' ; mesmo assim, ainda em 1855 , Jacob Burckhardt podia apresentar afrescos da abóbada da capela Sistina não apenas como obra de Michelangelo, mas como um dom do Papa Júlio II à humanidade : ''ESTE É O DOM '', ele escrevia no Cicerone , ''À NÓS DEIXADO PELO PAPA JÚLIO II.  ALTERNANDO ESTÍMULO E DOCILIDADE , A VIOLÊNCIA COM A BONDADE, ELE CONSEGUIU DE MICHELANGELO AQUILO QUE PROVAVELMENTE NINGUÉM MAIS PODERIA TER OBTIDO. A SUA LEMBRANÇA PERMANECERÁ ABENÇOADA PARA SEMPRE NA HISTÓRIA DA ARTE ''. É claro que hoje a situação é outra, mas a prática de prestar serviços extraordinários aos nossos clientes ainda embute, necessariamente , um alto nível de estresse de todos os sistemas. E a identificação da total invulnerabilidade das lojas de magia negra em suas respostas às exigências de seus clientes é o primeiro passo para o fortalecimento de qualquer área do empreendimento. 

K.M.

O sinal que indica alta velocidade .

Eu já a havia despistado . Meu sentimento encontrava nela a força elétrica de uma vontade de corresponder que me repelia com vivacidade ; em seus olhos eu via essa força soltar faíscas . Eram olhos daquela família dos que (que diziam as pupilas ?) parecem feitos de vários pedaços, por causa dos vários lugares onde eles desejam encontrar-se , ocultando o que querem achar . Olhos, por mentira sempre imóveis e passivos, mas dinâmicos, mensuráveis pelos metros e quilômetros que é preciso transpor para chegar ao local do encontro marcado, implacavelmente marcado, olhos que sorriam menos ainda ao prazer que os seduz do que se aureolam da tristeza e do desânimo de que talvez existam obstáculos para ir a tal encontro. Entre nossas mãos, tais seres são sempre criaturas em fuga. Para compreender as emoções que causam e que outras até mais belas não causam , é preciso calcular que tais olhos estão, pelo contrário, não imóveis, mas em movimento , e acrescentar à sua pessoa um sinal correspondente ao que em física é o sinal que indica alta velocidade .

K.M.

A limpidez sem ironia do Casanova político

Forçar um sorriso, às vezes, está realmente entre as coisas mais difíceis que eu tenho a fazer. Por outro lado, ainda estou em ótima forma (.) -----, eu disse, e pouco a pouco minha sombra voltou a entrar naquele escritório, a pretexto de fazer uma consulta. Parei junto à velha mesa e propus um concerto à ela. ----- Improvisação e desordem, como você bem sabe (.) mas com a segurança da calma e do bom entendimento. Outros teriam me censurado pela crueldade com a vizinhança, mas você não. Minha imaginação não é tão mecânica assim(.) -----, eu disse. Certo era que novas obsessões em flor e uma insistente mania de grandeza vinham mortificando as pessoas à minha volta, mas meu compromisso político com uma dicção alarmante não parecia colhida em nenhum livro conhecido. Não parecia, mas era. Nada, no entanto, era redibitório em mim; as grandes obras ressurgiam na ponta da minha língua a cada minuto. Meus discursos não eram meros pretextos para nenhuma outra coisa; eles provinham do núcleo do intelecto que constituía minha experiência vital... havia um flagrante cunho de persistência em tudo quanto eu dizia e nas consequências que (cronicamente) vinha colhendo. ----- Em todo caso (insisti com ela) nenhum desperdício de energia; em cada enunciado, uma astúcia sutil, tanto nas mãos quanto na cabeça. O único problema é que há uma pequena dose de loucura na minha sinceridade de propósitos que dificilmente passa despercebida. Constantemente, ela é usada para justificar as tentativas de me constranger. Não sendo capaz de aderir de forma estável às expectativas burguesas de amor e trabalho, procuro aquartelar-me numa vida mental invisível, de que apenas o rompante é verborrágico. A cólera e a retórica, só a fachada. E a leitora certamente sente o tranco. Não sou de levá-la até a metade do caminho e depois abandoná-la às misérias e esquisitices do homem aprisionado na turba. Meu jeito de obrigar as leitoras a ouvir-me envolve um certo número de promessas tácitas, entre elas a de continuar falando ininterruptamente. O Verbo Encarnado varre ''isso'' da mesa e o substitui por ''aquilo''. Não sou senão honestidade, a limpidez sem ironia do Casanova político (.) ------, eu disse.

K.M.

Há de fazer-me bem... --- O que influencia seu voto?

Há de fazer-me bem...

Talvez, pela rigidez das minhas atitudes, eu tentasse recusar uma gratidão que pensasse não merecer de todo. Bobagem: se a Terra merecesse ser abandonada, se a pequena elite de iniciados que talvez se resuma apenas à mim estivesse sendo impelida rumo à Lua, não seria por causa daqueles que se lhe parecem obedientes, e eu teria dito de imediato a Verdade. Em vez disso, disse apenas:

------- Grato. Grato. Os senhores são de fato gentlemans. Ficarei em contato com vocês. Há de fazer-me bem.

Durante o período de indagações, fiz de tudo para que não vissem o meu pequeno chalé como parte de uma tremenda tramóia. Pela primeira vez em meses, procurei orientar-me no mundo externo à procura de cifras e presságios curiosos. Mas a vida daquele verão americano seguia transformando-se num outono : talvez o excesso de observadores estivesse transformando o churrasco em moluscos gelados. Eu me sentia muito infantil ainda, pois muitas e mais largas formas de inscrições tinham ficado apagadas durante as escavações, e eram como palha, ou teias de aranha, ou manchas, ou formigas, ou pardais que tinham que ser interpretados. Havia símbolos antigos espalhados por toda parte, vinham acompanhados de mensagens telepáticas metafísicas. A maioria delas podia ser ignorada, mas foram justamente elas, que não representavam nada, que captaram por algum motivo oculto a atenção dos observadores. ------ Eloquentes ----- diziam eles ------ mas a respeito de quê (?) ----, ninguém o sabia.

No intervalo havia a desculpa da loucura.Toda uma nação, talvez a totalidade da sociedade civilizada, estava à procura do estado sem culpa da loucura, o privilegiado, o quase aristocrático estado de loucura.

Poder-se-ia condensar isso tudo em duas ou três frases?

SIM: eis uma das minhas últimas tentativas:

''Em algum lugar ele duvidava da capacidade daqueles judeus para o primitivismo erótico romano vodu''.


O que influencia seu voto?

Precisamos mesmo dessa proximidade do vivido desta crônica. O ser humano atual não cultiva nada que não possa ser abreviado .Com efeito, consegui abreviar a narrativa e ela mostrou-se capaz de emancipar-se da tradição literária com as próprias forças , conservando até mesmo a superposição de camadas finas e translúcidas do romance moderno clássico, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia : como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas . What´s cooking ?? , cocktail , magia , etc... demonstrações telepáticas, volitivas etc , digamos que a história não está mal contada, como um super-caleidoscópio , com súbitas pulsões de felicidade, e Eterno Retorno duas ou três vezes por dia Aconchegado em minha carapaça vitamínica de super-homem , brinco de estar contente, mas entrego os pontos lá pela décima página , falando das coisas e cores perfeitas que se encontram na natureza.

K.M.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

COMPROMISSO

Meu compromisso sempre foi com a arte e o conhecimento, o que legitimou eternamente minha voz no mundo inteiro, mesmo contra minha vontade. Não dependendo da propaganda oficial, e sim do cumprimento dos meus próprios milagres, fiquei rico com minha coleção de falências. Depois, todos se divertiram humildemente, acampados num jato de aluguel difícil, para complementarem a ilusão costumeira. Mas já era tarde, e eu parti calado entre aqueles que não se voltavam para a VERDADE SANTA, na posse do meu inofensivo segredo assexuado.

K.M.

REPERCUSSÕES RÁPIDAS E REJEITOS


1

Tenho diante de mim as páginas de um livro pesado. Ergo de sua inclinação na carteira velha, com olhos vivos, uma alma mais viva que os meus olhos ; para além do nada, isto representa um armazém repleto de números suados, enfileirados na prateleira prateada do dia útil. Nele, as empresas e seus empregados são regulares, ativos operadores de uma massa humana e natural que contorna de sossego  alerta a vulgaridade das ruas. Nas vidraças espremem-se os ruídos da diversidade. Baixo os olhos sobre essas páginas que se levantam  encharcadas do útero de madeira, em que os numeros cuidadosos puseram os resultados da sociedade. E, com um sorriso que guardo para meu , lembro que a vida, que tem essas páginas com números de fazendas e dinheiro, com os seus bancos, e os traços à régua que os representam , inclui tbm os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a verdadeira valia do mundo.

2

Viver no ácido é  o sistema da luz genital dos deuses, ave namorada do primeiro abismo , sem alcova clara, recebida de presente no reino do coração invisível. É, naturalmente, um modo de morrer esfarelando-se, cujo mel inaugura, a cada vez, seus próprios meandros.Pólen incendiário, sêmen de vísceras transportadas na luz astral , tentativa verde ou vermelha, pátria misteriosa do musgo . Uai ! , é o que se diz, se o tempo vai ou fica preso em nós. Reino das raízes com fulgor de menta, púbis molhado do poema, parte da molhada habitação terrestre ---- como se as cascatas do azar, do âmbar, das narinas houvessem transgredido minha substância e eu, desde este momento , lhe levasse embora comigo, oh leitora .

3

As vísceras nos transportam até o sangue urgente da sede, às vésperas dos quatro únicos números do ano. Mas agora, os números não cantam ---- madrugam ao menor sinal de marcha. Vísceras na estria, cantando silenciosamente na fibra dos números. Sentados num fio contra o tempo desnudo, devorando os ponteiros do relógio . Ácido resplandecer da linguagem do curto-circuito. Para a manhã, o outono, o espasmo intelectual . Nunca dizer senão ''Uai !'', tempo do mesmo uai . A cidade inteira esticada no agora-mesmo ---- ainda não escapamos da maldição que pesava sobre o vazio. A verdade roubada outra vez florescendo. Nos defendemos brasa a brasa.


4

Um som na imaginação insólita que aplasta o servilismo realista. Eu vi na entrada do hotel , entre bois, carrapichos e bicos de ganso ao sol ; no meio da mesa, na tenda, no armazém da estação ; depois, em aeroportos constelados ---- aquela mesma efígie de distanciamento, monumento de pedra e polícia. E assim se passou comigo . O vagido, o pavor das tocaias, o caminho . Crescimento por decreto  ? Pouco a pouco fazendo-se tímpano, onde o sexo aperta a garganta. Do luminoso mel da palpitação das abelhas, do meio -dia estático à folhagem morna. Era o mesmo soluço esparramado...

5

Espermatozóides. Sinto que exprimi com força uma agitação tântrica que nada aplacará. Deixei nome, filhos e um casaco de couro novinho oculto naquela porra. E um pote de brilhantina. Todas as reivindicações políticas ---- deixei pátria, família, cheques sem fundo ---- serão pagas ; não são mais que o disfarce sob o qual se dissimula minha porra represada! Deixei nela minha bermuda vermelha, um resto de sabão e uma espécie de angústia que exige incessantemente mudanças e destruições. Deixei máquina de barbear enferrujada, livros abertos e bocas fechadas: deixei rasuras ininteligíveis, e ainda : sapatos de rua e de festa ; caspa, cheiro de pés inertes e conta corrente encerrada. Deixei brigas de família. 


6

Longínquo e tão imperceptível quanto um ponto , perfurando a espessura enevoada da noite, mas sem nunca aparecer senão como a vacilação inapreensível de um raio. 

O zumbido da guerra nos suspende muito alto acima de nós mesmos . Nietzsche  não escreveu ''Ich liebe die Unwissenheit um die Zukunft '' ??? 

É no alto que devemos enterrar aquilo que fomos.

A guerra tendo estourado, tornei-me incapaz de esperar. Exatamente: de esperar uma liberação que este livro é para mim. A desordem é a condição deste livro. É a condição desta guerra. Ela é ilimitada em todos os sentidos. Os ombros me pesam. Voa-me a cabeça. Estou sem apoio de chão e de nuvem. Adoro que meus humores, meus excessos não tenham meta. No entanto, queria chegar, mas sei que não chegarei nunca... Uma vontade mesmo assim prossegue, zombando de minha impaciência. O choro de manhã cedo. A mocinha no caixão. A pavana da marquesa. A mina que nem sempre explode. O ouro que nem sempre vem. Tornamo-nos longínquos e indiferentes durante esta guerra. Habituamo-nos rapidamente ao saque puro e simples. Longínquos nas palavras. Indiferentes aos perigos que tanto nos atraem. Para além da agitação, os homens no ouro se enterram. Mas exterior à ambição bruta, mensurável, está o desejo que temos de ir ao extremo de um destino evidente : a MORTE ? , é algo que não nos perguntamos mais.


7

Para nenhum soldado da guerra atual é viril viver enfeitiçado. O que fora de si não se exalta, mas aterra, é muito pouco: um punhado de terra ensanguentada. Por alguns dias, a vida alcança a obscuridade vazia dos campos de batalha. E com essas coisas avelhantadas, rima-se o abstrato com o ab-sinto das situações-limite. Resulta daí, invariavelmente, uma maravilhosa descontração : ao espírito se revela o universo à disposição do desejo e dos movimentos corporais, mas a perturbação da guerra logo se instala. A vida passa a ser sentida como uma náusea do estômago ; a existência da própria alma como um incômodo dos músculos. A desolação do espírito, quando agudamente sentida, faz marés , de longe, no corpo, e dói por delegação. Nada se obtém assim acima do humor selvagem. O que fora de nós persiste é apenas o limite que não se fez, o fim que não se pretende ter, mas se tem preso no próprio umbigo. Está-se consciente de si um dia, em que a dor consciente é, como diz o poeta: ''laguidez, mareo y angustioso afán ''.


8

Esta noite senti-me novamente com a ''língua cortada''. Corpo dentro, corpo fora, qual o meu ofício ? Acontece que o estado de guerra até aqui só me trouxe a chance extrema. Esta de absorver os mortos, nossos e alheios. Uma espécie de liberação sem piedade. Da mesma forma que a fortuna chega durante o sono, insuperáveis obstáculos vencidos com facilidade durante um sonho. ''Vi'', ao passo que até aqui só me esforçara. Havia sempre um sentimento de luta. E ainda isto : assumir o espaço entre blocos de percepção demarcados. Mas o sonho caiu na armadilha dos meus desejos tão simplesmente quanto escrevo isto. Uma chance tão enfeitiçada num mundo que se tornou medonho me fez tremer : tremer de alegria ! Reencontrei , perdido de vício, a pureza e a inocência. No mais, me deixei gemer à vontade. Vi que não morrerei sem ter antes saído de todos os meus infernos, e muito menos desta guerra. 

Mas é difícil. O Logos se constrói na minha retina de marinheiro...


9

Agora há pouco vi os estragos na periferia próxima. As bombas caíram quando eu estava perto da Baixada. Muitos mortos. Eu como um espectro que desliza entre eles. O ar me deixa passar... nas mais graves circunstâncias... ao acaso... os acontecimentos... roendo-me como um rato... falseando seu julgamento... ser roído... contra a realidade... cortante da força... tudo alucinação, sonho ruim... o horror me pegando pela garganta... passando para os equívocos não ditos... e muito além... e pleno sol à beira do pântano... se atingirmos o outro lado (que ficou por mencionar ) a solidão se desfará no ar... mas olha, cuidado... o primeiro ataque não foi como o último, não será como o próximo... mas não estamos mais tão longe de casa, e o anjo da barcarola não tem corpo nem voz. O gosto da vida é pouco para dele se abrir mão. Casa de tolerância. Amendoim. Carvão. Falo de uma onda para outra onda. O fogo destrói o freio do vento. O torto, o aborto, barcos em flor, na lama, ficam mais brancos do que são. É isso. O prisma não conhece a servidão em que mergulho.


10

Ao que parece, não há silêncio de morte o bastante para segurar essas línguas. Tristes putas ! , fico áfono de vê-las e ouvi-las. A impostura é berrante demais para ser ignorada. Angústia. Minha angústia é a perder de vista. Não pela guerra, mas pelas putas. Tenho a a audácia de um destroço de tanque. Cínico, tortuoso, incômodo. E a virilidade de um cachorro dissimulada sob a calça. Como ser forte o bastante? Uma dignidade de árvore. Uma moral de vento. E uma absurda doçura totalmente insuspeitada. Mais puro do que nunca quando de pau de fora. Não me sinto mais separado da minha morte, mas me figurando vivo. É minha degradação seguir vivo após cada batalha.  Digo: não estar mais pego pela garganta. Sonho com uma ascese sem brilho, ornando-se com cores de uma vida distante, mas sem regras. E tal ascese não estaria a salvo de nenhum perigo, de nenhum terremoto; ela se combinaria com excessos perigosos em todos os sentidos. A consciência da guerra é feita de uma tal angústia. Vê-se na guerra aquilo que falta à vida, quando muito cotidiana : aquilo que dá medo e provoca o horror. Perder o pensamento no horror: eis tudo ! O suplício. A queda dos telhados sobre as cabeças. A guerra me atrái cada vez mais como os sonhos no escuro que provocam angústia. Mas os homens de guerra são alheios a tais sentimentos, ela simplesmente corresponde a suas necessidades, e eles vão na frente para evitar uma tal angústia.


11

O homenzinho que sofre à medida que o infortúnio cresce, o homenzinho confuso em meio à legião de homenzinhos aos quais foi prometido o reino dos céus. Asceta, como eu zombava de mim. Pela absurda aceitação de uma convicção eventualmente tocada. Este eu, no táxi, inexistente, mera encarnação da idéia do personagem, símbolo bípede de um puritanismo feito de negativas : não ao álcool, não ao tabaco, um não equivalente ao dinheiro ---- ninguém, na realidade ; um nome, um número, uma diminuta idéia construída mecanicamente em conjunto com o mercado. Sem graves oposições ou encalhes. Talvez seja isto que estejamos aprendendo com o tempo e, insensivelmente, sem prestar atenção. Talvez os ossos saibam disso.


12

Falei-lhe lentamente, como se as coisas pudessem melhorar se eu escolhesse bem as palavras , como se já não fosse visível a impaciência na pequena boca arredondada. ---- Só quero falar com você um instante (.) -----, acrescentei . -----Mas se estiver incomodando (.....) ----, então ela sorriu, divertida, levantou uma das mãos e deixou cair, pôs-se de lado para me deixar passar para perto de si. Não sei se estava caçoando ao inclinar , sorridente, a cabeça. ----- Só um instante --- repeti . ---- Mas sente-se (ela disse ) ----- num gesto de boas vindas. ---- Quer beber alguma coisa (?) ----- , na mesa, as mãos escondidas atrás do corpo. Movi a cabeça , fui anotando cada mudança do aposento, lembrei minha primeira visita, a fisionomia da desordem, da experiência acumulada. Mas algum elemento desconhecido continuava se impondo através de meus atos, emanando o mesmo clima de alegria sem motivo, de artifício eficiente ; a sensação de uma vida fora do tempo e resgatável pela literatura.


13

Levantei-me para encher o copo e me aproximei dela com a garrafa. O novo penteado atenuava a animalidade do meu rosto; meus lábios tentavam intumescer-se ; minhas pálbebras desciam como grossas membranas calosas, como valvas de que se podia prever o golpe seco. Bebemos e me abandonei de novo na poltrona , sorrindo às lembranças de nossa juventude . ----- Penso eu em seu ódio às mentiras, arrebatado; em como você se exaspera e sua voz falha quando é preciso salvar o sentido da vida, cavando, convencendo, quebrando as unhas para desenterrar e destruir feito insetos aquelas mentiras ubíquas que agem sem que ninguém as mencione -----, eu disse. Ela se contraiu, de pé no quarto ----- Por que não me deixa explicar ? O que voce quer saber ? EStá vendo???? Não me deixa falar. Você pensou que eu gostei do que aconteceu aquela noite, que eu podia fazer o que quisesse. Voce veio com uma mentira e eu fiquei ouvindo. Parecia um homem distinto, meio louco, pensei no começo de tudo. Entenda: eu estava gostando de ouvir voce aquela noite e perdi a noção das horas, a culpa é sua (.)


14

Toda noite, uma estrela no mesmo ponto do céu. A absurdez do eu das pulgas ou das moscas se desconjunta na absurdez da beleza da estrela. Nada mais que uma estrela ---- - simplesmente estrela. A matéria ''é'' , na medida em que dissolve um homem ou põe a nu seus dispositivos e agenciamentos. O eu opaco mantém o eu na opacidade. Pensem na monstruosidade dos eu s do inferno e do paraíso, pensem no Deus do Eu, que ordenou sua multiplicidade delirante. Naquelas alturas, eu já aceitara a morte do argumento de cinema, zombava da possibilidade de ganhar dinheiro escrevendo-o, estava certo de que as vicissitudes que planejara para meus personagens, com precisão e frieza, nunca se cumpririam. Nunca mais chegaríamos os quatro àquele final de projeto de argumento que me esperava escondido na gaveta. Ainda assim, eu não conseguia me desinteressar de seus personagens. Mil vezes teria pago o preço para abandonar-me, sem interrupção, ao feitiço, para poder vê-las ir e vir, para abandonar-me à atenção absorta com que seguia seus movimentos exóticos, as situações que se repetiam e se modificavam sem motivo. Girando sobre uma tarde, um desejo, um desânimo, diversas vezes ; para poder transformar minhas andanças em turbilhão, compadecer-me, inteirar-me, deixar-me querer , fluir.


15

Uma zona de luz suave a continha. Eu brincava de medir meu suor examinando a superfície embaçada do copo ---- Note que as histórias de fantasmas são todas iguais, uma única história ---- comecei a dizer ---- Costumamos conta-las como se fossem diferentes, como se já não tivéssemos ouvido dez vezes a mesma coisa. Veja a importância que damos aos detalhes.