sábado, 23 de fevereiro de 2019

RECORDAÇÃO DA ACRÓPOLE

Escolhi uma maneira de interpretar a Grécia ligando em tudo a Grécia antiga à moderna, sem nenhuma solução de continuidade, como fazia Henry Miller que em qualquer ateniense encontrada aqui enxergava Afrodite ou Palas Atena. Eu era o árbitro adequado de todos os desejos imundos e preocupações sangrentas da humanidade, por isto sentia-me perambulando no país certo: ------ Qual seria a verdadeira informação akáshica do país que inventou o diálogo ? (me perguntava: ------ O certo é que a Grécia, talvez devido à elasticidade dos símbolos e do mito, sempre nos escapa (: ''onda, cor de polpa de uva; cinza-oliva aqui perto; asa rosa-salmão da águia marinha lançando sombra sobre a água'' -------, e, vindo da Espanha, eu era um cavaleiro com lento levantar de pálpebras: o elemento mais vivo de Atenas e de toda Grécia era mesmo a LUZ que, nos redimindo de muitas culpas, conseguia nos subtrair à idéia dissonante da morte. Agradou-me substantivamente surpreender o povo nas ruas do bairro velho que conduz à Acrópole, guardando ainda uns restos orientalizantes, com alguma pequena igreja bizantina, antiquários expondo ícones, tavernas onde se pode provar uma posta de marida; peixe assado com salada de alface e orégano. Da parte moderna, com seus incaracterísticos palácios neoclássicos, projetados no século XIX pelo arquiteto de um rei alemão da Grécia (!), retenho os cafés movimentados, Jannaki, Floka, Zonars, Zarakatos, onde me serviam doces a base de laranja e mel (blakava, kurabies) enquanto eu mostrava quanto o dinheiro do mundo valia para mim : ------- Está vendo isto ? ---, perguntei à garçonete; havia quebra-ventos e estávamos no terceiro ou quarto andar; ergui, de repente, uma nota de cem dólares entre os dedos; descansei as costas na parede e, tirando minhas elegantes luvas de equitação, comecei a dobrar o dinheiro. Fazia um aviãozinho de papel: ---- Agora imagine que esse avião foi sequestrado por terroristas (.) -----, eu disse, arregaçando minhas mangas raglã, e lancei o aviãozinho com dois dedos; observei-o ganhar velocidade por entre as luzes enfileiradas, para dentro da atmosfera mais e mais escura. Antes que eu pagasse a conta a garçonete desceu afoitamente para procurar os destroços da aeronave no meio da rua. Minha alma, amante de sensações refinadas, estava agora gratificada pelo origami aéreo enquanto eu subia a colina da Acrópole, recordando que era aqui o centro da Atenas antiga, com seus protagonistas: o homem e a luz; o templo servia como testemunha dos dois. O que resta da Acrópole é suficiente para nos restituir o esquema de uma cultura artística fundada sobre o ritmo e a medida, a ''divina proporção''. Tudo isto é apenas uma digressão para explicar porque tomei o assunto para meditação naquela manhã; tal meditação fortalecia minha vontade. Então, gradualmente revigorada por tais exercícios, a vontade pôde se tornar finalmente o orgão da minha percepção. Comparando a mozarteana sinfonia em sol menor K.550 a uma figura destacada do friso das Panacéias, Schumann aludiu implicitamente ao caráter musical dessa parte do Partenon: poderia tê-lo feito ao todo. Pois aqui se vê, se palpa, se ouve o ''cântico das colunas'', e eu fazia aquilo também para relaxar a tensão nervosa do acidente aéreo. Tendo praticado na noite anterior alguns exercícios de meditação recomendados por Rudolf Steiner no livro ''Conhecimento das Altas Esferas e como Atingi-las '', buscava reconstituir na mente o trabalho imenso da edificação do templo, do qual certamente participara toda a polis, inclusive tantos olhos ilustres, tantos cérebros que até hoje dialogam conosco. O Partenon era um ruína que, sustentada pela força da LUZ, ressuscitava cada dia, GLORIOSAMENTE.

(.)

De volta à Grécia, nada meditativo, passei a cuidar exclusivamente de mim mesmo. Em Creta o brilho do sol era belo, o azul do céu monocromático era de uma altivez emersoniana, porém eu me sentia um pouco repulsivo, coberto de coisas ásperas para desabafar sobre política e economia. ----- Muito bem, K. (pensava comigo) você fez na Cultura Mundial o mesmo que Schaffner y Marx fizeram nas capas e ternos; o que o General Sarnoff fez nas comunicações; o que Bernard Baruch fez num banco de jardim ------ excedendo discretamente qualquer limitação humana. ---, de fato, na minha miscelânea estavam camuflados estes e muitos outros: Yeats, Apollinaire, Julius Evola, Jung, Heidegger, Morris A. Cohen, Gertrude Stein, Anais Nin, estatísticas de futebol e escândalos sexuais da alta roda. Eu havia colocado Salvador, na Bahia, entre os cretenses e associado Búffalo Bill à Rasputin enquanto lia o noticiário político do Brasil na internet. Desembarcando em Heraklion, nome da antiga Cândia, capital da ilha, logo me impressionou a semelhança desta paisagem com a de Castela: terra parda, pobre em árvores além de oliveiras; calor seco e um certo tom desolado. - Uma tal semelhança (me perguntei) não teria impelido (pareceu-me óbvio) o candiota Domenikos Theotocópulos a instalar-se para sempre na castelhana Toledo (?) ------, na verdade, eu divagava gratuitamente para esquivar-me de responsabilidades apoéticas, mania que havia me valido uma dura repreensão de Daiana: ---- Você fica o tempo todo tranquilo como um rei, enquanto todos os problemas humanos do mundo acontecem(: Não há moscas sobre Jesus (.), K, você é incapaz de se ligar à coordenadas espaço-temporais: à um tempo, aos cristãos, aos judeus, aos muçulmanos (: está sempre no mundo da lua, com suas caraminholas sobre algum tipo de destinação cósmica (: diga-me, que Grande Obra é essa na qual está sempre trabalhando (?) -, mas, com seus lindos cabelos ondulados, suas sutilezas astuciosas, a sutil elegância de dedos de unhas pintadas entrelaçados e pernas cruzadas e seus complicados resmungos filosóficos, ela não era uma inimiga perigosa; não era nem mesmo uma inimiga. Era um amor... mas aquelas guerrinhas de sociedade nada tinham a ver comigo, e eu ainda não havia esquecido todas aquelas coisas pesadas que tinha andado dizendo dos caras da Liga IvT. E até a semana passada ( se não me engano) estava na mesma posição que Tolstói - quando simplesmente esquecera-me de participar da História, para lembrar-me apenas da Comédia Histórica, o pior dos jogos sociais. Realmente, não era uma argumentação usual. Tolstói? Tolstói fora assunto da semana passada. O belo, inteligente e aristocrático rosto de Daiana ficava ora pálido, ora enrubescido por emoções ocultas e suaves perturbações intelectuais. Eu tinha pena de nós dois, por tudo que era nosso, estranhos organismos debaixo do Sol. Grandes espíritos fechados em almas orgulhosas. E almas banidas, ainda por cima, ansiando pelo seu mundo original: a Grécia! Andando pelas ruas batidas de sol de Heraklion, parei no mercado de cerâmica que assegurava a continuação, no tempo e no espaço, de um técnica tão afim à sensibilidade grega. Remonto aqui ao século XVI, quando Veneza dominava a ilha de Creta; nesta mesma paisagem metálica o jovem Domenikos Theotocópulos inseguro caminhava, iniciando sua formação nas igrejas e palácios férteis em ícones. Orientado na direção da oblíqua Bizâncio e seus emblemas, habituara-se a ''deformar'' os modelos naturais, transplantando mais tarde para Toledo esse método que a crítica oitocentista ligou erradamente ao seu suposto estigmatismo. Na realidade, cedo se organizou, na confluência desses dois mundos, a família mitológica de El Greco.


Palácio de Knossos.

O Museu de Heraklion hospeda muitas peças fundamentais da civilização minoense. Os vasos de Creta são superiores aos áticos; retenho entre outros o vaso de argila dito ''Adorador de Haghia Tríada''; o vaso Konassa em forma de pássaro. Algumas dessas cerâmicas, de concepção, forma e desenho insólitos, prenunciam Picasso, Brague, Miró. Convém ligar o museu ao palácio de Knossos, descoberto e restaurado no princípio do século XX pelo arqueólogo Sir Arthur Evans com relativo acerto, apesar de soluções infelizes como as reconstituições das pinturas, a começar pelo célebre ‘’Príncipe dos Lírios’’. Diante da comparação, Daiana disse: Eis o que voce tem a fazer . Vá até o Minotauro e diga: ‘’Sou uma pessoa muito distinta ---- poeta, scholar, crítico, instrutor, mapeador, editor. Tenho renome internacional e já assegurei um lugar na história literária dos Estados Unidos. -----, tudo isto era verdade, diga-se de passagem. Acrescentou depois: ‘’E aqui está sua oportunidade: o mundo literário atual está se decompondo. Já não há uma única visão que escape da epidemia. A equipe de criação do Labirinto está carente. Não contratem Fleischer, contratem a mim, ou só lhes restarão intelectuais de terceira, universitários ----, pensava que Daiana era apenas uma intermediária do Minotauro, mas seus olhos estavam vermelhos e sua testa era feita de listras de ferro. Esteve acordada a noite inteira examinando o resultado das eleições, perambulando pelo quarto e o saguão do hotel. Sei que espécie de pessoas ocupavam o pensamento dela: Walpole, o Conde Mosca, Disraeli, René Char. Enquanto isso, eu meditava com sublimidade intemporal a respeito do tempo e da linguagem, em busca de uma base histórica para as lendas de Minos e do Minotauro. A partir de algumas pesquisas antigas do plano de construção do palácio , como também o vestígio de culturas arcaicas ( a dupla machadinha, os enormes chifres de pedra no jardim da esplanada) era possível acreditar na existência de Diana. O ser humano podia ser nobre, mas ainda era todo feito de argila, e a loucura social frequentemente o tornava engraçado e vil. Sforza, por exemplo, tinha toda minha estima, mas nunca lia nada original; estava sempre fazendo cruzeiros ou esquiando em Sun Valley; sem meus pareceres, teria publicado apenas papel higiênico. Livrei-o de ser um bilionário ignorante. Conseguiu chegar em muitas arestas recônditas do mundo intelectual por meu intermédio. E também a uma pouco conhecida visão de Eliot. ----- Sim --- disse à Daiana --- eu lhe conto tudo: Sforza tem um elevador privativo, ninguém consegue chegar à sua cobertura vindo dos andares inferiores. É visto sempre à distância, quando entra e sai do helicóptero. ---, e, horas mais tarde, eu e Daiana estávamos sentados perto de Sforza naquele helicóptero da Guarda Costeira: Homero assegura que a região da ilha de Creta é rica e bela; indicando-nos ainda que o mar cretense tem a cor da borra do vinho. Mas olhando do alto, preferi deter-me mentalmente no museu e no palácio de Knossos, fontes de contínua magia, e explorar as pegadas de Dédalo, máximo inventor: surpreendendo-o a construir o Labirinto, planejado com tão espantosa precisão. Assim Dédalo abriu também uma vasta galeria de textos, de Homero à James Joyce e à Jorge Luís Borges. Pesquisando os passos fluidos de Ariana (sempre segundo Homero) descobrimos que aqui em Knossos, Dédalo inventou para a princesa um grande espaço dedicado à dança. Outra figura diversa: vestida de uma túnica vermelha, fonte da sua cabeleira-diadema, contaminamos todos de sua estranheza, vejo eclipsar-se naquele corredor ‘’la fille de Minos et de Pasiphaé’’. Claro que procurava situar também Idomeneu, rei de Creta, e sua família: não foram eles reconstituídos pelo mais grego dos compositores, isto é, Mozart, numa ópera fundada sobre a idéia do sacrifício, onde o coro alcança o plano épico da tragédia antiga, onde o Mediterrâneo penetra os poros da partitura, sal e espuma ? Entretanto, neste palácio a presença mais tangível é a do próprio Minotauro que existiu desde o começo do mundo; e temo que, cumprindo seu destino destruidor, elevado hoje à uma dimensão cósmica, subsista até o fim. Seja como for, eu havia feito a jogada audaciosa: obrigara Sforza a combater a tecnocracia e a plutocracia de clássicos em punho; através dele, forçara algumas das pessoas mais poderosas dos Estados Unidos a discutir e rediscutir Platão e Hobbes; obrigara presidentes de companhias aéreas, presidentes de Bolsas de Valores a representar Antígona nas salas de reunião. Neste papel, Sforza tinha sido notável, revelando-se um bom educador. Algo que foi lembrado durante o vôo. Mas Sforza também possuía sonhos ambiciosos e jogava agora com seus recentes conhecimentos de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, depositando uma confiança neles que me pareceu excessiva.

K.M.

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