domingo, 10 de março de 2019

PRÁTICA COMBINATÓRIA NEUTRA

 Quando as correspondências finalmente começaram a chegar nos seu novo endereço, Winner simplesmente passou a jogar todas elas fora sem abrir. Um dia, por acaso, não fez isso com uma das cartas, um envelope branco, seu nome e endereço escrito em letras de forma garrafais, traços vacilantes possivelmente feitos com a mão esquerda (pensava Winner ). Ele colocou a carta sobre sua mesa e acendeu um cigarro ----Winner só conseguia escrever ouvindo música, e ligou na Radio Clássicos. Quando ligou seu computador, notou que ele estava agora protegido por uma senha desconhecida, e que alguém andara mexendo nele. Revistou o quarto para ver se faltava mais alguma coisa. As máquinas fotográficas e os micro-drones estavam todos lá. Cannon, Polaroid, Nikon . E tbm relógios caros,cartões de crédito, talões  europeus, documentos americanos, nada havia sido tocado. Winner não chegou a ficar preocupado.  Rapidamente desbloqueou o computador e abriu o arquivo no qual vinha trabalhando atualmente, um ensaio sobre o mistério do Labirinto. ''É desse modo '', Winner pensava, soprando colunas de fumaça cada vez mais densas na direção do teto ''É desse modo que se constitui o Labirinto. O Palácio de Minos, desde a aurora da história humana e do Estado, confusão de esquinas, avenidas, baixios, guichês, corredores e câmeras, o espaço bloqueado e sem saída do Território ''. O certo é que havia algo naquela carta que perturbava Winner... ''E o Minotauro '' continuava refletindo Winner ''o avesso sacrificial e devorador da transcendência, instala-se decisivamente no coração de todos os Territórios''.  No tempo em que Winner costuma abrir sua correspondência todo dia, ele estava no auge da fama literária, e não era raro receber cartas com retratos de mulheres nuas, que sempre o divertiam. Mas o retrato daquela garota não o divertiu tanto assim. Dentro do envelope que não rasgara havia apenas o retrato da Srta. Albertine Rivibelle.  Ela não estava nua, e sim vestida, em trajes de inverno europeus. No verso do retrato nada estava escrito. Winner procurou a garrafa de café e, quanto se servia, voltou a pensar no ''guarda da alfândega'', do ensaio que estava escrevendo.  ''Ao personagem do alfandegário '', escreveu lentamente Winner ''contrapomos a figura do guia . É o GUIA quem nos faz atravessar as fronteiras em contrabando, sem deixar vestígios ---- ele não cria novos muros com o pretexto de abrir uma porta. É de um guia capaz de fazer a literatura passar entre os Castelos Fortificados , os Cercados e Instituições Internas do Território, que precisamos; mas que ele tbm nos faça sair do Labirinto territorial e saltar de um espaço a outro, com autonomia. Dédalo só saiu do Labirinto abrindo um novo espaço, o que não limita a condenação generalizada de Bordieu do estético como um mero sinal de classe e consumo conspícuo''. Para seguir com sua arte combinatória, Winner pensava, teria ressuscitar o código de leitura do Noveau Roman.
''Rasgando caminho entre as falsas aparências do mundo, precisávamos de sossego; e nenhum de nós estava se sentindo sossegado após aquela reunião em Delfos, com os ricos; mas agora, a caminho do aeroporto, nos atínhamos a algo que adorávamos mencionar quando estávamos de bom humor: conversávamos sobre aquele encontro, graças ao qual ela havia penetrado tão profundamente no meu caráter, e, consequentemente, no caráter oculto da minha obra, que era certo que ela olhava agora muito mais profundamente dentro de si mesma.  Unia a majestade ao charme, sendo um dos motivos deste a sua irregularidade, então um tanto rebarbativa. Agora ela me assessorava o tempo todo, orientando-me, atuando como treinadora, empresária, cozinheira, amante e gerente; inconscientemente, eu inventara um trabalhinho talhada para ela e a mantinha ocupada com minhas anotações, num excitamento intolerável de reivindicação. Folheando aquelas páginas ao longo do vôo, em poucos minutos ela descobrira relações de afinidade entre a estátua e o livro do imperador, cujo título na versão italiana que estudei era ''Colloqui con se stesso''; ambas categóricas, precisas, afirmativas. Mas nos seus olhos, o que eu via era o receio de me ver vivendo segundo os ditames convencionais da fama: recebendo cartas idiotas de leitores estúpidos, sendo reconhecido e vigiado por pessoas influentes do mundo dos negócios, jantando no Sardi´s, sendo entrevistado por beldades interesseiras em gabinetes almofadados, mulheres que se perfumavam com almíscar e espetavam bonecos de vodu. - Muito bem (retruquei) sou realmente um sucesso e uma celebridade mundial, e daí(?) reduzi todos os adversários a um bando de paisanos loucos, sub-celebridades regionais catatônicas, fazendo protestos publicitários fracassados contra mim, pintando faixas com mercuriocromo para postarem no youtube, enquanto a inveja os arrasta para o esgoto... e daí(?) -, com aquelas palavras, eu golpeava duramente o núcleo secreto de seus receios, para libertá-la. Pois ela me parecia estar na posse de uma sabedoria muito preciosa para permanecer refém dessas barreiras; o excessivo calculismo dos meus elogios rasgados era uma arma poderosa: ---- O defumador de textos... , ela disse . Deu-me uma pancada no pescoço, e pegou o manuscrito do topo da pilha: ----- Estudando suas anotações, impressionou-me a atualidade de Les Corps conducteurs... começa com vitrines em uma rua do centro; alguém parece sentr-se mal, com náusea, apoiado em um hidrante; cnquistadores lutam vem em meio a selva: um avião como o nosso sobrevoa a cena, indo da américa do Norte para a do Sul; um homem (o mesmo Winner dos seus estudos?) tenta em vão convencer, pelo telefone, uma mulher como eu a continuar tendo um caso com ele. Mais tarde, nós o vemos na cama, presumivelmente na noite anterior. Depois, um homem (o mesmo?) vai ao médico . Mas será em Manhattan ou numa cidade da américa do Sul; outro homem (o mesmo?) visita um congresso sul-americano de escritores no qual se debate o papel social da arte, no qual várias obras de arte são descritas ou citadas nos intervalos, e enquanto tentamos inventariar os fios do enredo, o livro analisado é sutilmente substituído por um plágio de Romance Negro, de Rubem Fonseca, com o mesmo homem no papel de protagonista: ''Winner não estava mais possuído pela mesma euforia. Tinha em sua mente, um vago plano sinistro que pretendia colocar em prática durante o debate daquela noite. Era um debate sobre Literatura Policial. Os participantes do debate se encontraram momentos antes do seu início. Entre eles, além do próprio Winner, estava tbm presente o escritor americano James Ellroy e o alemão Willy Voos, que vivia em Alicante, Espanha. O moderador era o francês Jean Claude Billé. Nenhum deles conhecia Winner pessoalmente. Ellroy colocou a mão no ombro de Winner e disse : ---- NÓS SOMOS OS CONTINUADORES DA TRAGÉDIA GREGA(.) -----, depois curvou a cabeça para trás e ficou rindo estranhamente. P.D. James, muito anglicanamente, fingiu não notar o comportamento do americano. Voos não conseguia escnder sua surpresa . O mesmo acontecia com Billé. -----VOCÊ LEMBRA O CARCAJU QUE ATERROTIZAVA OSLEITORES DE ''THE BIG NOWHERE'' (.) -----, disse Winner. ----UM RAPINANTE FEROZ, LE WOLVERINE (.) -----, disse billé. Ellroy estava fumando sozinho num canto. Os outros escritores, que admiravam a brutalidade, a falta de compaixão da literatura de Ellroy, esperavam naquele momento que ele se acalmasse e começasse a falar. ----Naturalmente (alguém disse ) ele não está drogado nem tendo um surto psicótico. Aos debates (!) ----,conclamou Billé. Num dos cantos da imensa caverna instalaram uma espécie de auditório, com uma mesa sobre um estrado e um semi-círculo de cadeira, todas ocupadas. Gente em pé. Billé começou : ----- Dizem que para a chamada Escola Inglesa, crime, criminoso e vítima existem apenas para permitir ao detetive o trabalho de solucionar o Enigma. Segundo esse ponto de vista, os autores ingleses não perderiam muito tempo na descrição dos personagens e suas motivações. Por outro lado, na escola americana, o Enigma é um pretexto para o crime . O crime, lado nefasto, secreto e obscuro da natureza humana, é o essencial. O detetive americano despreza os valores da sociedade em que atua, seja ele um investigador privado, como Sam Spade ou Philip Marlowe ; sejo um membro da força policial, como Hopkins ; seja um paranóico obsessivo, fugitivo de um asilo del oucos, como Kramer, do Romance Negro, de Winner. A corrupção, a violência, a loucura são a NORMA. Mas o que será que P.D. James tem adizer sobre isso (?) ------, ele disse. P.D. James respondeu com clareza : ---- Sim ,nós acreditamos que o Romance Policial Inglês, iniciado em 1848 com o livro Moonstone, de um autor muito ilustre, Wilkie Collins, deve narrar a descoberta de um crime através de um processo metódico e racional . A ação, em nossos livros, se desenvolve numa sociedade de hierarquias definidas, em que a paz e a ordem são a norma. O detetive , seja um investigador particular como Hercule Poirot, seja um inspetor daScotland Yard , como Larry Holt ou meu personagem Dalgliesh, trabalham em defesa dessa sociedade cujos valores respeita e aceita. Mas, se a ordem  e a paz sao a norma, isto não significa que loucura, violência e corrupção não existam. Apenas são apresentadas ''sem a ênfase'' ----  e sorri amistosamente ---- ''dos americanos '' (.) -----, concluiu ele. ---- Quem é Larry Holt (?!) ----, alguém pergunta na platéia. ---- Personagem do Edgar Wallace, da época em que sua filha namorava o Carlos Castaneda (.) -----, o debate se tornava muito técnico então, e passara a ser acompanhado pelos assistentes sem muito interesse. Além do mais, nenhuma novidade estava sendo dita. Billé provocou Winner, perguntando se ele, aoafirmar, dois anos antes, que não existem outras escolas de romance noir além da inglesa e da americana, queria com isso dizer que apenas se escreve literatura negra na língua de Shakespeare. ----- Não quero aqui expor novamente oque eu disse (explicou Winner ) sobre ainexistência de uma tradição francesa de ''roman noir''. Dois americanos, Edgar Allan Poe e Dashiel Hammett, estabeleceram , em épocas distintas, as características modernas desse gênero literário, mas dou a  vocês,franceses , a honra de serem os principais exegetas, os clássicos hermeneutas do gênero. Vou responder à pergunta de maneira sucinta. Existe literatura de mistério em todas as línguas.  Simenon escreveu mais de uma centena de romances policiais.. em francês. Ele era belga. O Willy Voos, ao meu lado, escreve em alemão. Kyotaro Nishimura, tbm presente a este festival, tem centenas de livros policiais publicados, consta que ele escreve um por mês... em japonês. Dizem ainda que Yamamura Misa é mais rápida do que uma copiadora Nashua. Georgi Wainer escreve em russo. Montalbán e Juan Madri, em espanhol. .Aliás a língua que produz mais escritores policiais no mundo é a catalã, considerando-se o número reduzido de seus utentes. Escreve-se roman noir em urdu, tagalo, malgaxe, tâmul (.) ----, Winner fez uma pausa. ----- Verifico, porém , que muitos dos presentes ---- este senhor aqui na primeira fila, por exemplo , está quase dormindo --- talvez esteja achando o debate aborrecido, e eu tenho uma sugestão a fazer (.) ----, então, o homem a quem Winer se referia abriu os olhos, tirou o cachimbo da boca, e disse : ----- Eu não estava dormindo. Gosto de fumar e ouvir com os olhos fechados. Se estivesse o dormindo o cachimbo teria caído da minha boca (.) -----, risos. --- Qual é sua sugestão ? ----, perguntou Billé. Ele não gosotu da afirmação de Winner.  ----- Acabamos de dizer que o Roman Noir não se caracteriza pela existência de um crime, com uma  vítima que se sabe logo quem é ; e um criminoso, desconhecido ; e um detetive , que afinal descobre a identidade desse criminoso. Assim ,não existe o crime perfeito. Certo ? ----
------ Não, não existe o crime perfeito... na literatura (.) ----, disse Voos.
----- Nem na vida real ---- disse o homem do cachimbo.
----- Na vida real o que existem são os detetives reais. Humanos como todo mundo.
-----O crime perfeito é como uma obra de arte. Na obra de arte, como disse Baudelaire, não existe o ACASO, como não existe na mecânica. Uma obra deve ser como uma máquina ---- acrescentou Winner. 
----- Como você vai provar a existência do crime perfeito. Isso é como provar a existência de Deus (.) ---- disse Ellroy.
-----Neste crime perfeito que imaginei (explicou Winner ) todos saberão logo de partida quem é o criminoso e terão de descobrir qual é o crime e quem é a vítima. Eu apenas mudei um dos dados do esquema -----
P.D. James sorri... esses americanos. Mas Ellroy ouvia muito atentamente. Ellroy James conhecia os abismos, Ellroy James sabia que Winner falava com convicção, e que o crime que ele tinha imaginado era realmente  nefasto. O homem do cachimbo agora tinha os olhos bem abertos. Uma parte da platéia ria. 
----- Espero que não esteja propondo que façamos com você o jogo do Die Panne do suíço Durrenmatt, em que voce seria Alfredo Traps e nós, Zorn, Kummer, Pilet. Ou seja, teríamos que buscar e revelar sua culpa nos fundos de sua consciência. A assunção da culpa, ao final ,redimindo o ''fluxo de consciência e o o''monólogo interior '' nas entrelinhas de cada interrogatório (.)----
A intervenção do editor da Polar, na sequência, animou bastante a discussão; Todos os membros da mesa participavam e tbm uma grande parte da platéia. Mas Winner agora estava em silêncio, desenhando, num papel à sua frente, estrelas de cinco pontas, num traço contínuo e sem levantar o lápis.
----- Já passou muito da hora do jantar e eu estou com fome (.) ----, ele disse''
 Ela disse.
Ele disse.
E enquanto eu observava os movimentos de seus joelhos, suas coxas, seus quadris, era lentamente que, através destes exercícios cotidianos, ela tomava consciência das necessidades da minha arte e da forma radical do meu livro; até a descoberta de que aquilo que parecia uma completa ausência de forma era na verdade a riqueza de um novo gênero de escrita que continha a chave do tempo futuro. 
----- PRÁTICA COMBNATÓRIA NEUTRA  Para a sociedade (eu disse) tal metamorfose não ocorre sem sérias consequências (tomei o manuscrito dela e li-o em voz alta): '' Multidões sem número, religiões, ritos incontáveis, navios de toda espécie que navegam com calma ou na tempestade, a diversidade da gente que nasce, vive e desaparece; a vida de outros que em tempos remotos existiram neste mundo, a vida que será vivida depois de ti, a vida que hoje se está vivendo no meio de povos longínquos. Quantos nem ao menos conhecem teu nome, WINNER! Quantos depressa o esquecerão, após ouvi-lo. Pensa como vale pouco a lembrança, a glória e qualquer outra coisa (.) '' ... Na Cidade Universal do gênero humano (continuei) o escritor tem todos os direitos e pode atribuir-se todos os modos de ser e de dizer, mas o que diz pode ''ainda não ter'' sentido claro, ou não ser ''ainda verdadeiro'', mas contém o esplendor suficiente do que outrora se chamava beleza e força e que a literatura contemporânea destruiu. 
--- Vamos ter um bom espetáculo. 
''Todos nós cooperamos para atingir uma única meta; uns conscientemente e em plena consequência, outros sem compreender nada, como se dormissem. Também os que dormem (segundo, creio, Heráclito) são operários e colaboradores dos acontecimentos que se desenrolam no mundo'' (idem) ; ''Alguém talvez receie uma mutação: mas que coisa poderá acontecer sem mutação ?? Haverá algo que a natureza universal mais ame, ou lhe seja mais apropriado?? E tu mesmo poderia alimentar-te se os alimentos não se transformassem?? (idem); '' Deves ter sempre presente, ininterrupta, a visão da duração perene do tempo universal, a visão da substância universal'' (idem) . D: ------Amo-o com todo meu coração. Nenhum outro homem me conquistou e me amou melhor. ----, sob o efeito do álcool, sua letra cursiva era surpreendentemente grande, nevrálgica, inconformista, asfixiante e sem rosto.

K.M.

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