sexta-feira, 8 de março de 2019

de Horkheimer em A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO (continuação)


(1)

''Pertence ao sentido da obra de arte, da aparência estética, ser aquilo em que se converte, na magia do primitivo, o novo e o terrível: a manifestação do todo no particular. Na obra de arte volta sempre a se realizar a duplicação pela qual a coisa se manifestava como algo de espiritual, como exteriorização do Mana. É isto que constitui sua aura. Enquanto expressão da totalidade, a arte reclama a dignidade do Absoluto. Isso, ás vezes, levou a filosofia a atribuir-lhes prioridade em face do conhecimento conceitual. Segundo Schelling, a Arte entre em ação quando o Saber desampara os homens. Para ele, a Arte é ''o modelo da ciência, e é aonde a Arte está que a Ciência deve 
ainda chegar''


(2)

A subjetividade volatizou-se na lógica de regras de jogo pretensamente indeterminadas, a fim de dispor de uma maneira ainda mais desembaraçada. O positivismo --- que afinal não recuou nem mesmo diante do pensamento, essa quimera tecida pelo cérebro no sentido mais liberal do termo --- eliminou a última instância intermediária entre a ação individual e a norma social. O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação em geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que tudo engloba. Ela é usada como um instrumento universal servindo para a fabricação de todos os demais instrumentos. Rigidamente funcionalizada, ela tão fatal quanto a manipulação calculada com exatidão na produção material e cujos resultados para s homens escapam a todo cálculo. Cumpriu-se afinal sua velha ambição de ser um órgão puro dos fins.

(3)

É da imaturidade dos dominados que se nutre a hipermaturidade da sociedade. Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz. Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a ssemelhá-lo de novo ao mundo dos anfíbios. A regressão das massas, de que hoje tanto se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas. Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se convertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força. Os remadores que não podem se falar estão atrelados a um compasso, assim como o trabalhador moderno na fábrica, no cinema e no coletivo.

(4)

Ao se reificar na lei e na organização, quando os homens se tornaram sedentários e, depois, na economia mercantil, a dominação teve que limitar-se. O instrumento ganha autonomia: a instância mediadora do espírito, independentemente da vontade dos dirigentes, suaviza o caráter imediato da injustiça econômica. Os instrumentos da dominação destinados a alcançar a todos -- a linguagem ,as armas e por fim as máquinas --- devem se deixar alcançar por todos. É assim que o aspecto da racionalidade se impõe na dominação como um aspecto que é também distinto dela. A objetividade do meio, que o torna universalmente disponível, sua ''objetividade para todos'', já implica a crítica da dominação da qual o pensamento surgiu, como um de seus meios. No trajeto da mitologia à logística, o pensamento perdeu o elemento da reflexão sobre si mesmo, e hoje a maquinaria mutila os homens mesmo quando os alimenta. Sob a forma das máquinas, porém , a ratio alienada move-se em direção a uma sociedade que reconcilia o pensamento solidificado, enquanto aparelhagem intelectuwal e material, com o ser vivo liberado e o relaciona com a própria sociedade como seu sujeito real.

(5)

Não há nenhum ser no mundo que a ciência não possa penetrar, mas o que pode ser penetrado pela ciência não é o ser. É o novo, segundo Kant, que o juízo filosófico visa e, no entanto, ele não conhece nada de novo, porque repete tão somente o que a razão colocou no objeto. Mas este pensamento, resguardado dos sonhos de um visionário nas diversas disciplinas da ciência, recebe a conta: a dominação universal da natureza volta-se contra o próprio sujeito pensante; nada sobre dele senão justamente esse ''eu penso'' eternamente igual que tem que poder acompanhar todas as minhas representações. Sujeito e objeto tornam-se ambos nulos. O eu abstrato, o título que dá o direito a protocolar e sistematizar, não tem diante de si outra coisa senão o material abstrato, que nenhuma outra propriedade possui além de ser um substrato para semelhante posse.

(6)

O formalismo matemático, cujo instrumento é o número, a figura mais abstrata do imediato, mantém o pensamento firmemente preso à mera imediatidade. O factual tem a última palavra, o conhecimento restringe-se à sua repetição, o pensamento transforma-se na mera tautologia.

*
A subsunção do factual, seja sob a pré-história lendária, mítica, seja sob o formalismo matemático, o relacionamento simbólico do presente ao evento mítico no rito ou à categoria abstrata na ciência, faz com que o novo apareça como algo predeterminado, que é assim na verdade o antigo. Quem fica privado da esperança não é a existência, mas o saber que no símbolo figurativo ou matemático se apropria da existência enquanto esquema e a perpetua como tal.

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As mentiras mitológicas da missão e do destino que elas mobilizam em seu lugar nem sequer chegam a dizer uma total inverdade: não eram mais as leis objetivas do mercado que imperavam nas ações dos empresários e impeliam à catástrofe. antes pelo contrário, a decisão consciente dos dirigentes gerais, como resultante tão fatal quanto os mais cegos mecanismos de preços, leva a efeito a velha lei do valor e assim cumpre o destino do capitalismo. Os próprios dominadores não acreditam em nenhuma necessidade objetiva, mesmo que às vezes dêem esse nome a suas maquinações. eles se arvoram em engenheiros da história universal. Só os dominados aceitam como necessidade intangível o processo que, a cada decreto elevando o nível de vida, aumenta o grau de sua impotência. 

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