segunda-feira, 25 de março de 2019

TEMPORAL

---- Bobagem (Carmen disse) Eles vão continuar insisitndo que seu Hamlet é apenas mais uma história de fantasmas. Não perceberão que tinham ao alcance dos dedos um estilista, que pintava de memória as notícias sem parecer um simples copiador da realidade. Mimesis: onde termina a fronteira entre a realidade e a supra-realidade dos arquétipos? ----, a verdadeira confissão, algumas das minhas associações recentes feitas sob o efeito da ganja. Como acontece com alguns escritores, eu vinha escrevendo meu último livro sob o efeito da maconha. Tratava-se de altamirar as notícias, altamirando-se e altamirando-a, a Carmen. ''L´altra (pensava) vive de suo proprio volo.. .secondo i filosofi: un sole che inserisco nel mio libro''. Mas no fundo da minha sibilina indecisão, em Itacaré, a erva vinha me dando um sentimento de algo novo mais ou menos no momento que achava que já havia escrito de tudo. O ato de largar o Livro Inacabado tinha sido uma coragem deslocada, algo que faria de mim o tipo de figura cômica que eu teria explorado à perfeição na Escola da Suspeita. ---- Pensando bem (ela continuou) Nunca houve realmente nada para ser dito. O velho atavismo que nos acorrenta ao homem da turba, e no refluxo de sua Doxa (psicanálise, marxismo, a democracia e seus contratos) E da lógica Outside In e Inside Out em cada categoria de produtos e serviços. Sociedade de Controle pós-atômica e suas ferramentos de precificação. Cost Plus com mark-up ou Competition Based com gap de posicionamento? Na verdade (queiram ou não). foi William Burroughs quem iniciou a análise dessa situação, apenas não dominava a ciência política a ponto de estender suas conclusões para o Sistema Financeiro. A pirataria, o rapto, o plágio e os vírus substituíram as greves e o que no século XIX, segundo Deleuze, se chamava de sabotagem (o tamanco -- SABOT -- emperrando a máquina). Organizações transversais de indivíduos livres... JUDAS... Já pensou nisso? Ou preferiria ficar dormindo? Talvez precise admitir que não é tão adorado quanto pensa, que seu público leitor é ainda mais discreto que você(.) ---- Concordei em silêncio, e ela prosseguiu: ----Sua adorável América, que criticamos há anos, é na verdade um monopólio holográfico que produz efeitos reais, e faz coisas reais com a vida e a obra das pessoas, não só com os personagens dos seus livros (.) ----, de fato, ela me fazia pensar a contra-gosto, quando chegava inspirada numa daquelas pousadas em que eu me exilava, em Itacaré, indiferente aos alarmes e pânicos que me assaltavam na capital. ---- Ora, não jogue ovos podres só porque não consegue entender. Logo logo, voce vai querer entender tudo, até as coisas desagradáveis. Vai querer aceitar mais e mais, até mesmo o que lhe parece hostil. Atravessará vacúolos cintilantes de solidão e silêncio, fora do tempo e do espaço, a partir dos quais, finalmente, terá um grande anúncio a fazer ao jornal, algo parecido com Deus. Dinâmica de um modelo de resposta automática aos Mercados. O regime dos best-sellers tornou-se a alta-rotatividade, que começou com as redes de fast-food nas praças de alimentação dos shoppings, onde deve-se comer rápido e ceder o lugar, e logo invadiu as livrarias, todas elas hoje tbm sediadas nos shoppings. As livrarias viraram lojas de discos e books de modelos com capa dura, que só vendem produtos repertoriados por um top-club industrializado ou hit-parede de enlatados altamente vendáveis, de onde emerge um Inconsciente bombardeado pela mídia e a propaganda. Fora isso, há apenas manuais técnicos e café expresso no guichê. Assim, a literatura tornou-se o excremento do cinema e do jornal, por não haver mais nenhum lugar ''fora do sistema''. A alta-rotatividade constitui necessariamente um Mercado do Esperado: come-se rápido para defecar logo, eis a fórmula do que chama de romance no século XXI. Poderia ainda argumentar que, para um publicitário (críticos e editores, todos o são) não é fácil admitir que a publicidade seja uma ocupação desonesta, feita de panelinhas de marcas hediondas. As modas, as manias, os rostos em cartaz, são como os burocratas da crítica vendida: não admitem mais a noção literária do grande escritor como um estremecedor de paisagens. Mesmo o audacioso, o escandaloso, o estranho, etc, são previamente moldados pelo mercado do ''papel higiênico''. As condições de criação literária, que só podem se liberar no INESPERADO, na rotação lenta e na difusão progressiva do entendimento (com ''passo de paloma'', como dizia Nietzsche) SÃO FRÁGEIS. Surge desse penúria então um romance padrão monstruoso, folhetinesco, ruim, de fácil digestão, feito como uma imitação rápida de Balzac, Stendhal, Céline, pouco importa. Ou melhor, todos estes são inimitáveis. Céline é inimitável! Faulkner é inimitável! Eu sou inimitável! E são todas elas sintaxes ''inesperadas'' e ''a-históricas'', mergulhadas numa vastam nuvem a-histórica, do qual o presente imediato é apenas DEVIR, o modo da intransitividade trans-histórica, uma participação anti-natural (contre-nature) entre o homem e a natureza, entre o mundo e o seu ABERTO. Esse DEVIR é como uma simbiose, um movimento espontâneo de captura, conexão transversal entre heterogêneos. Aliança e contiguidade absoluta. O DEVIR é o outro lado do espelho da produção (nossa homenagem a Baudrillard): o inverso de uma identidade, ou uma identidade ao contrário, para recordar a palavra Tupinambá para INIMIGO. Vide: ALIANÇA DEMONÍACA. Não estamos aqui nem no elemento místico=serial do sacrifício, nem no elemento mítico-estrutural do totemismo, m as no elemento místico-real do DEVIR (.) ----, eu disse, buscando acrescentar, para o dia seguinte, em que viajaríamos, a imagem da própria Carmen, grandiosa entre seus papéis soltos, dirigindo-me um sorriso de endereço extraviado. Sem saber como, eu a colocava ao lado das idéias romanescas que me possuíam há meses, liberadas nas minhas anotações pela separação prolongada de Beatriz e Joana: a idéia ainda central de uma vida em comum com uma mulher. Muitas milhares de cartas e documentos que eu exumei do sotão e guardei nos Arquivos de Baton Rouge. Que histórias! E também o próprio sótão ---- aquela sala enorme no terceiro andar com 40 arcas! Quarenta arcas com o pelame da cobertura de pele de urso intacta. Continham enormes caixas de chapéus dos anos 1850, um estereoscópio de mogno e fotos tiradas nos anos 1860, floretes de esgrima, estojos de espingardas, um velho telescópio, antigos silhões femininos, cestas para gatos, lonas para danças dotadas de argolas para encaixar por cima dos tapetes da saleta, banjos, violões, cítares. Num espaço de colgaduras e tapeçarias de séculos extintos, magnificamente dispostos segundo o gosto espanhol do ''EMPAQUE'', oito armaduras de reis e príncipes que detinham em suas mãos o governo oculto do mundo. ---- Em vão (comentei com Carmen) eu faria soar fantasmas e clarins para atiçar os ânimos, se é do que me acusam. As armaduras simplesmente não se movem dali, satisfeitas da posição em que seus mestres as deixaram, na paz mensurável das planícies florentinas ou holandesas (.) -----, e certo é que havia ali também a lança de Mallarmé, mas em vão, já que, tendo expelido para sempre os inúteis despojos acessórios, havíamos todos ingressado num campo vibratório luminoso do FUNKELIN DER SALE, onde não podíamos mais ser governados por ninguém! Pessoas de todos os tipos tinham ido trabalhar no NEWS, por falta de opção --- de jovens turcos que queriam partir o mundo ao meio e começar tudo de novo, à lindas modelos andróginas, impossíveis de serem imaginadas gemendo, até velhos repórteres cansados da vida nas ruas, ansiando por um trago, desejando apenas uma chance para terminar seus dias em paz. Havia de tudo: restava saber apenas se aquelas novas ansiedades narrativas neles realmente conseguiriam ''intentar'' o FUTURO ou capitulariam na prisão perpétua do comentário, com sátiras pouco originais sobre o ''estado de coisas''. Na melhor das hipóteses, não era possível confiar neles e, quando estavam nos dias ruins, não passavam de apostadores, blefadores e atravessadores de notícias. E não podíamos dizer que todos tinham sido atingidos por igual por minha narrativa até o momento. Apenas Carmen, aquela criança crescida, aparecia flutuando na minha direção com propósitos de pensamento crítico, com a mesma qualidade das imagens de outras mulheres bonitas, o que aos poucos culminou numa associação definitiva. ''Ótimo (pensava eu ) assim eu continuo no centro da história. Qualquer que seja o modo como as coisas aconteçam, a antecedência clarividente com que é narrada a história torna grave a disposição dos jogadores; assim como, para Joana, tudo começara quando ela aceitara romper o silêncio em favor de Sabrina, tornando-a uma personagem exitosa e preponderante, não pela minha monstruosa paixão adolescente, mas por torná-la possível, e tendo-a escrito com afinco, deixando-a passar da pura impossibilidade do silêncio à verdade escandalosa de sua realização no mundo, e no mundo do jornal. --- Leva-se anos para alcançar esse nível de detalhes (Carmen contemporizou) prêmio do mais alto pessimismo. Há em todo escritor trágico, essa necessidade de encontrar o ENTRE das coisas, esse movimento em direção à LUZ daquilo que não pode ser iluminado, o excesso ue só se torna ultrapassagem exitosa no escandalo das palavras...E que livrinho mais incongruente! Ainda assim, começamos todos a perceber, esmagados, a real amplidão do PROJETO. Um herói de romance ainda mais fora do sistema, da lei-psíquica que rege as portas da sociedade de consumo. Nesse nível de detalhe, onde impera a desesperança, é que se escondem os universais únicos, a duração eterna, o Chikai Bardo, o inimitável barômetro próprio(.) ---- concluí. Sabia exatamente sobre o que ela estava falando: nas extremidades da minha teia de palavras vivas, eu registrava a mais leve vibração, que se prolongava até meu corpo em ondas de grande intensidade e me fazia, de um salto, atingir o lugar exato em que a consciência se incendeia. A TEIA DO ACONTECIMENTO-APROPRIADOR. Há seis meses, eu iniciara aquele diário, em forma de exegese plástico-política, com um louco apanhado de idéias e esboços para projetos enormes e megalomaníacos em ARTE (escrevi cem mil palavras em oito semanas, e mais de uma vez tinham sido vinte páginas por dia, num estilo que saía vacilante devido à cãimbra do passado  e ao convite persistente da praia; um jargão travado de sociologia, psicologia analítica, farmacologia, hermetismo egípicio, cyber-espionagem quântica, histórias em quadrinhos e show business. Entre idas e vindas ao jornal, o diário adquirira o esboço de mais idéias do que jamais terei de novo; idéias que me chegavam tão rápido e tão ricas que algumas vezes sentia meu cérebro entorpecido pela passagem delas. Durante seis meses, ele foi o embrião congelado de algum tema inconcebivelmente novo. Cheguei a ter um vislumbre do Flaubert deve ter sentido porque, enquanto continuava abastecendo-o, frequentemente uma pilha de palavras se uniam para me proporcionar uma pequena crise de escolha. As consequências do que eu estava fazendo começaram a penetrar no meu ânimo. Como esperava, minhas conversas com o pessoal da Edição eram sempre uma perda de tempo. Sabiam de tudo o que estava acontecendo no Brasil e no Mundo, mas não conseguíamos encontrar o significado apropriado, falando uns com os outros como os políticos falam no rádio. digo: sempre em defesa própria. A noção de que deveríamos passar adiante o que sabíamos consumia nossos nervos com uma urgência infantil que sempre nos frustrava, no final. Heresias perigosas eram cometidas em nome do arrivismo e do protagonismo de alta-rotatividade. Eu usava do bom-humor, incomodando a firmeza dos vínculos que tínhamos uns com os outros, e deixando que caprichassem nas retaliações.  ----- Esse é o nosso mundo (lhes dizia) totalmente lacerado, filho da Pompa com a Ditadura, que de vez em quando sai de férias, engordando para voltar à carga; filho da predominância do efêmero; das teorias rapidamente esgotadas; que, desejando recuperá-las, nós calamos e foto-montamos. O mundo onde as coisas, laceradas pela Espada do tempo ou do Ditador, talvez finalmente COLEM (.) ----, era como se eu  estivesse cativo dos sintomas da empolgação suicida, prodígios de trabalho rápido, e uma confiança absoluta de que poderia continuar para sempre. Mas logo depois me encontrei perto de um segundo estágio, onde o que fora rápido era mais como uma febre, com um primeiro vento de fadiga passando sobre mim, e um conhecimento de que no final da noite alucinada me esperava apenas um frio drogado. Eis-nos diante de outro aspecto do Diário: o homem sem particularidades, livre da forma humana, intoxicado ao luar, enquanto fuma na janela do hotel, não se reconhecendo mais na pessoa que é, para o qual todos os traços do particularismo não fazem dele nada de particular; jamais próximo daquilo que lhe é mais próximo, jamais estranho àquilo que lhe é exterior; escolhendo ser assim por um ideal  cósmico pirata de Liberdade: desapegado de si mesmo, mais além do Umbral do Silêncio, sumindo-se cada vez mais fundo nas obscuras profundezas da força que sustenta seu corpo, sem nome ou individuação. Força que, amplificada, invade toda a Natureza, substantificando o tempo e transportando miríades de seres, sob mil formas adotadas instantaneamente ---- irresistível, selvagem, inesgotável, incansável e ilimitada, consumida por uma privação e uma insuficiência eternas, em que os fatos particulares estão sempre prestes a perderem-se no conjunto impessoal das relações antes de serem apropriadas pelo DHARMA, que marca a interseção momentânea. Ainda assim, eu era uma árvores que suportava a seiva ao invés de sentir a queda das folhas. Meu jeito de rir, inclusive, estava sendo bastante comentado no Jornal. As pessoas bem humoradas se divertiam; outras, se ofendiam facilmente. ---- NÃO RIA --- disse-me Sabrina ---- PARE COM ISSO! NÃO É UM SOM NORMAL (!) ---- em seguida, tentava explicar-me dizendo que era muito suscetível à influência do riso nas cisas de pessoas que dirigiam o olhar para mim . A Máquina Abstrata Viva (dizia) Tão específica, e aplicável a tantos negócios: novas listas de regulamentações bancárias, mudanças políticas súbitas, mercados acinários abalados, a magnitude moderada da moda, a previsão de grandes acontecimentos e, claro, as ''CASCATAS DE PREÇOS'' : digo, todos os elementos que compõem o preço das coisas, desde a margem líquida conseguida até o preço da lista de cada transação. O custo fixo, o custo variável da produção, os impostos, o custo de servir, o custo de ''promover'' e os descontos ---- em cada decisão de preços. A GRANULARIDADE DAS MINHAS ANÁLISES INTEMPESTIVAS! Mas Sabrina, e sobretudo Beatriz, rejeitavam tais análises, afirmando que eu não sabia tratar o DINHEIRO com ''deferência de fórmica de escritório'' ; e que eu me desvalorizava, que me esquivava das potencialidades do sucesso comum em prol de um ritmo neural irrefletido totalmente animalesco, carregando e descarregando, como um maníaco com uma escopeta, todos os centros da mente que eram forçados a tomar decisões difíceis. Ao rasgar a sintaxe convencional, eu atacava os hábitos da subjetividade domesticada que ninava o DINHEIRO, além da carne sutil que recobria os nervos dos consultores, de modo que as substâncias bio-químicas que sustentavam o equilíbrio das operações diárias sumiam de uma hora para outra, sem aviso, quando meu ''cavalo carbonizado atacado pela peste'' irrompia como um disparo no painel de controle. Sendo Sabrina também decoradora de interiores, além de proprietária de várias casas de praia na região, a cuidadosa elegância burguesa e ostentação eram naturais nela. De repente, me vinha a idéia de sexualiza-la novamente. Como naquele período da traição conjugal. Em outras palavras, deixar a Máquina Viva do Onanismo Tântrico deflorá-la a vontade, transformando-se numa extensão espectral viva da parte louca e vaidosa da minha personalidade, ao passo que as ofensas dela contra mim se generalizassem numa orgia sado-masoquista sem cura. E eu realmente fiz isso, algumas vezes, e foram momentos muito fecundos em reações. A sagração do tempo, nessas circunstâncias, tornava-se impetuosa, o que me permitia orquestrar desintoxicações diárias e exatas, para logo voltar a amamentar com erva as novas células , recém-chegadas ao mundo após cinco ou seis dias de abstinência (punhado de alcalóides desconhecidos), oscilando entre a casa de Sabrina e a rua dos bares, em frente à praia da Concha. ----- Acho que a Natureza nos inflinge as regras de Esparta e do formigueiro (Carmen disse) Vale a pena contorná-las? Até onde vão nossas prerrogativas? Onde começa a zona interditada para você, K? No ópio? ---, mas o ópio, para mim, não era tão nulo, nem tão acessório, e importava-me sua potência para mudar o rosto dos acontecimentos. ---- No ópio (expliquei-lhe) aquilo que leva um esforço literário à morte é de ordem eufórica ou heróica, por isso suscita oposição. A maior parte da tortura provém de um retorno forçado à vida, de uma desintoxicação, o que não era o caso no momento. A força de um verão inteiro havia agitado minhas veias, tinha feito borbulhar meu sangue, arrastando para dentro de mim blocos de gelo e fogo, que eu transmutava no dínamo das frases após cada noite de apocalipse tântrico no retiro do quarto escuro.  Trabalhando cada vez mais a custa de truques, fumava haxixe na noite anterior, e depois me dopava com uma overdose de ansiolíticos para domir. Ao amanhecer, forçava-me à auto-propulsão: me sentia ágil com novas percepções, conseguia ler palavras novas nas palavras que já tinha, e assim podia continuar no ritmo do trabalho, com a parte mais escrupulosa do meu cérebro lento demais para interferir. Minhas capacidades lógicas foram ficando fracas dia a dia, mas a nova fase do meu livro tinha sua própria lógica, e assim eu descarte todo raciocínio prudente. Era a matéria rápida das associações e sinapses que importava para tira-lo do limbo, e nisto eu andava insuperável: podia descobrir novas experiências nas frases do meu texto como um eremita que saboreia a Revelação das Escrituras; via tantas coisas em algumas frases que de bom grado mergulhava parágrafos inteiros no poço do amadorismo; desvios da forma não representavam nada além de atrativos. E havia também todo o desperdício da discussão feroz, ainda que não ouvido, entre os exércitos do Ego e do ID: ''Vi fracassar (pensava comigo, naquele ponto suspenso) vários intentos de conquistar e manipular o mundo. O mundo pertence ao Espírito, portanto, não deve ser manipulado. Quem o manipulo, o corrompe; quem pretende conserva-lo, o perde. Lao Tsé''. Logo depois, esperava que Carmen ressurgisse para me fazer ver as coisas de outro ângulo, se não estivesse de acordo. Mas as personagens agora me pareciam mais fortes, o ar tinha mais calor, e eu tornara-me diariamente mais sensível à nuance sexual de cada gesto feminino, palavra ou objeto, de modo que o livro se carregava sozinho. Talvez até mais, numa fria talhadeira de diálogos, penetrando valentemente a argamassa fosca de todas as objeções. ---- Me pergunto se (Carmen disse) esses sábios, a despeito de sua boa intuição, sabiam realmente o que expressavam as palavras. PERDER O MUNDO soa bem '. Mas seria preciso confrontar o autor pessoalmente, como fiz com Beatriz, ou relê-lo tantas vezes seguidas que se começasse a ver tudo em fosfenos, algo superior à letra, percebido diretamente como energia, pontos de luz esvoaçantes, ou como uma inteligência inorgânica agarrada à leitura, tal como um clavo ardendo, que revelaria em andamento, no mundo além da mente, um livro mais perigoso do que parecia. Experimentei isso no hospício, lendo Nietzsche, e nem vieram procurar saber o que eu andava anotando no pé das páginas. Entre o lado de fora e o de dentro, nenhuma diferença. Para sair da internação, bastou mostrar-me disposta a voltar a me comportar como uma pacata consumidora entre outras. Freud convenceu a polícia psiquiátrica do mundo de que era possível realizar contratos sociais com os loucos para que estes voltassem à vida em sociedade regulados pelo regime condicional da Indústria Farmacêutica listada nas Bolsas de Valores; desde então, o capital de giro do setor circula mais rapidamente, extraterritorialmente, na velocidade de suas próprias ''doenças''. Mercadorias como sofrimentos psíquicos e ajuda profissional tornaram-se ativos de grande rentabilidade, pairando acima dos sabujos do consultório, mas com nomes e logomarcas sombrias, todas conectadas à engrenagem da salvação da alma pelo consumismo. Anorexia, surtos-psicóticos, acessos de caridade induzidos por depressão, e o círculo vicioso da presunção sexual, subproduto dos distúrbios de ansiedade competitiva, também convergem para a indústria na forma de moda e propaganda enganosa (.) ---- ela disse. Em minha mente, eu também tinha agora em andamento um livro mais perigoso que o planejado, e minha paranóia provocada pelas drogas via longas sequências em cada frase de diálogo. Certamente, com a chegada de Carmen no hotel, pude manter temporariamente n lugar aquele terremoto extasiado. ---- Ao decidir escrever essa última parte, acho que salvei o livro inteiro de ser uma obra menor, mas as custas de uma esplendorosa desproporção (.) ---- eu disse. A mesma ansiedade, obstinada em julgar tudo do ponto de vista do meu ritmo. ---- Bom ,K. Sinceramente, acho que voce não está em condições de pensar nesse livro no momento. Pelo que me descreveu ontem, cada semana de trabalho nessas condições lhe custa um bombardeio, impregnado e drogado de luxúria, haxixe, prostitutas, Rivotril, álcool e café, trabalhando super-alerta e exausto até a morte(.) ----, ela disse. Mas eu tinha passado do ponto em que poderia parar. Não sabia mais coisa alguma, de repente não existia mais esperança alguma, ninguem confiável, nenhuma porta aberta, nenhuma aura brilharia no mundo nunca mais. O mundo seguiria arrastando consigo o esoterismo de cada ilusão romântica, e suas ovas de discos e shows em estádios, passeios turísticos, hecceidades comerciais, day-use em hotéis tropicais, salas de conferência, edições de jornal,  ministros em aeroportos e aquela garota de programa loira que eu... enfim, eu não tinha mais aquele sentimento claro de como as coisas funcionam, que é o que você necessita para as proporções de um romance longo, a prosa e o sexo espessos como a realidade. Eu me sentava numa cadeira e assistia uma partida de futebol pela televisão, ou me levantava e ia no calor até um daqueles quiosques de côco gelado na beira da praia. Era a minha saída do dia. ''Eis aqui (eu me repetia) um homem que parece preferir a morte à desfiguração da forma perfeita do próprio egoísmo. Mas um homem assim está seguro (concluía) '', vendo-me solitário na praia como alguem mergulhado num sonho rarefeito. Mais de uma vez, meu coração era invadido pelo desejo repentino de ouvir uma voz humana, enquanto um barco pesqueiro, à distância, mal se distinguia da água negra em que flutuava sob a noite. A caminhada, outras vezes, parecia uma patrulha sob um sol tropical, e era de dois quarteirões apenas, do hotel para a praia, nada mais. Quando voltava, ficava deitado, minha cabeça perdendo os invólucros externos da sedação, e com a migalha do Rivotril a primeira cobra de pensamento coleava em meu cérebro; e eu ia tomar um pouco de café (era uma viagem até a cozinha, mas quando voltava estava segurando um caderno de anotações e uma caneta). Algmas semanas depois, fui até o quiosque na beira da praia e voltei para casa com um pouco de mescalina. ''PROGRESSO'' , pensei ''Será bom dar à luz a moda americana''. E talvez a gente realmente morra um pouco com o veneno da mescalina no sangue, mas o sistema nervoso, neutralizado pelo convício social e a Doxa, substitui o mero narrador pela Máquina Abstrata de Narrar e os agenciamentos sem sujeito. No fim de uma longa semana de viagens pelas praias da região, da qual voltamos cheios de fotos de surv e ondas gigantes sob céus de tempestade, o Livro Inacabado ( e sua sequência) flutuou para dentro da mente de Carmen, e eu me sentei empertigado no sofá do hostel diante dela, o cachimbo aninhado na mão em concha, e com a outra, a esquerda, atravessei a membrana do prazer estático e cheio de luz que nos imobilizava na auto-contemplação, para encontrar seu nariz minúsculo, que fungava, e sua alva face colegial, na qual eu via a própria LUZ DE DEUS saindo de alguma matéria minha que ficara impregnada nela, durante aquelas caminhadas na chuva sob o efeito da erva. Com as palavras brotando uma a uma, em subidas e descidas separadas, elegantes em suas curvas, tranquilas em seus vôos, como o toque do ser transformado em outro ser, as últimas 160 páginas do Livro vieram à minha cabeça num estalo, como um bloco de concreto subitamente materializado entre micro-cristais de calcita. ---- Morfina que vira fantasma sob a chuva, sombra que vira foda, na encruzilhada do espelho Dá para imaginar o trabalho dos alcalóides na sua cabeça, K. Mas agora, deve vencê-los. são as lendas quem o recomenda: a expulsão dos demônios por intermédio das ginásticas respiratórias chinesas. sua ironia, inclusive, será muito útil a esse desígnio. ---- Carmen disse, de repente, e um zunido na minha cabeça indicava que minha mente estava de novo se armando. ---- O termo ''Profeta'' (eu disse), tomado do grego para designar uma condição estranha à cultura grega, nos enganaria se nos convidasse a fazer do ''Nabi'' aquele que apenas ''diz o futuro''. É uma dimensão da fala que a compromete em relações com o tempo muito mais importantes do que a simples descoberta de certos acontecimentos vindouros (.) ----, de vez em quando, olhava para os contornos evanescentes de CArmen, com a chuva no vidro da janela ao fundo e, pouco a pouco, ela se fundia na textura uniforme da noite. Por fim, antes de continuar, não vi na direção dela nada senão uma escuridão semelhante à uma parede sólida. ----- Ouvir o TROVÃOé difícil; ouvi-lo e ve-lo com seus relâmpagos, dificílimo (!), e dizer que antigamente o trovador chamava-se também TROVÃO, de trova... mas não creio que os trovadores de antanho trovejassem como o TROVÃO de agora. Quando ele surge, indesejado, áspero hóspede, todos nos preciptamos para o quarto de oratório, invocando Santa Bárbara e São Jerônimo. similia Similibus Curantur. Esconde-se também o canto do Magnificat, esse outro trovão, mas de música de câmara, e portanto, menor. Lembremonos com frequência!, não deixemos unicamente à Marx, Lênin e Mao a alegria da trovoada. O verdadeiro TROVÃO é assim: puxa a corda de suas descargas elétricas, e logo se retira para o ventre bojudo de DEUS. Ali, todo ovo é um monumento fechado, um auto-monumento. Existem figuras armadas apenas com idéias, e às vezes com apenas uma idéia, que explodem épocas inteiras, nas quais estão envoltos como múmias. alguns, como Jesus, Buddha ou Mozart, são tão poderosos que ressuscitam os mortos; outros nos roubam sem saber e nos lançam um encantamento ou maldição que leva séculos para se desfazer. E há aqueles, como eu, que conhecem o futuro: estes, não querem impor nada; querem supor, ou nos dar um suporte sólido para nossos sonhos. O mundo não continua em movimento apenas por ser uma proposta de pagamento. Nossa exigência militar, ENTÃO, chamemo-la temporariamente de ''pintura da vergonha prévia'' --- uma das principais atribuições do escritor contemporâneo. Pois é preciso que ele adquira a má-consciência do próprio tempo, antes de COMEÇAR, porque o que está em jogo ''aqui'', entre esses limites, o que se inscreve , ou PASSA, é ESCANDALOSO. É a verdade da narrativa que nos choca, incomoda e insulta, por um escandalo evidente que não sabemos, no entanto, situar. Descobri uma agulha à luz do TEMPORAL (!) --- ,eu disse. Ela riu com uma euforia superior à saúde. Continuei: ----- O TEMPORAL  parte da vontade desorganizada: trovão, raio, chuva, pânico. Procura-nos, envolve-nos, descarregando a eletricidade que ele próprio encerrava. O Temporal, ao mesmo tempo, mostra oculta a realidade. É bem deste mundo, mas revela-nos um ângulo do outro. QUEM É DESTE MUNDO? QUEM ESTÁ? O VERBO DESARTICULA-SE, O SOM . INQUIETANTE PENSAR QUE O INVISÍVEL ADVERTE. GOSTARÍAMOS DE PODER INCRIMINAR AS PALAVRAS.. SÓ QUE NÃO! NUNCA ELAS FORAM MAIS ESTRITAS; ISSO, OU AS PRÓPRIAS CIRCUNSTÂNCIAS, PARA FAZER UM AFAGO EM ORTEGA Y GASSET... mas isso bem poderia ser reconfortante; ou ainda que certos detalhes, que devemos reconhecer como obscenos, decorrem de uma necessidade que os enobrece, tornando-os inevitáveis não apenas pela ARTE, mas também por um constrangimento talvez moral, talvez fundamental. A contradição tem, certamente, um grande poder escandaloso. Que coisas muito baixas e gestos que não convém aqui mencionar se imponham a mim de repente, como portador de certos valores, essa afirmação , no instante em que ela nos atinge, com uma evidência contrariante, contrastante, incontestável e intolerável, nos toca ESCANDALOSAMENTE, qualquer que seja nossa liberdade em relação ao que o que o costume nos faz considerar como muito baixo ou muito alto. Nenhum Dubuffet consegue pintar a matéria do TEMPORAL! Talvez todas as coisas sejam ''através dele''. O Temporal nunca estudou, sabe mil pontos obscuros que nos apraz esquecer. O texto do TEMPORAL! Sem elucidar seus propósitos. O escuro. A saia. O esforço que fazemos para isolar teoricamente o ponto em que o escândalo nos atinge (apelando, por exemplo, ao que sabemos do sagrado, objeto de desejo e de horror ) assemelha-se ao trabalho dos glóbulos sanguíneos para renovar a parte ferida do escandalizado, o EGO. Porquê ISSO? EXASPERA-SE! E mesmo que respondamos à Ele apenas pelo riso, pela ironia, o mal-estar ou a indiferença, há na situação que Ele afirma diante de todos, uma certeza tão simples, embora completamente incerta, ligada à uma verdade tão exclusiva e tão extensa, que todos sentem que suas atitudes, quaisquer que sejam, já fazem parte d ´Ele e o confirmam irresistivelmente (.) ---- concluí. Carmen sugeriu ter ouvido atentamente, mas era mentira. Logo depois, voltou ao assunto do ''PROGRESSO''. ---- Uma regra ou um lirismo ? (quis saber) Bem sabes que, com ISSO, está metendo a colher no pirão mole das células jovens, atrapalhando o trabalho racional do cérebro. A palavra não arde apenas desse Fogo (.) --- um imperceptível sorriso irônico fez ondular os cílios dela, que contemplava o círculo que, com a ponta do guarda-chuva, ia traçando no tapete.

K.M.






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