terça-feira, 12 de março de 2019

DELFOS

Charles Baudelaire havia escrito: ''N´y a-t-il pas un Apollon pour tout homme qui le mérite?''; ora, se Apolo guiava as musas, convém também dizer que era o planejador super-consciente da obra poética cósmica, reunindo inspiração e artesanato ----- modesto precursor grego de Jorge Luís Borges. Daiana não se encontrava em condições de me dizer que eu não era (evidentemente) um sujeito falso, um bandido, um mesmerizador, alguém que nunca havia considerado a realidade algo mais que um espectro altamente manipulável.... um judas. E as pessoas com quem nos encontraríamos em breve, por sua vez, não poderiam dizer-me o que achavam estar errado comigo: era notório que eu sofria de uma ilusão, e possivelmente uma ilusão maravilhosa, poderosíssima, que por uma forma extremamente rara de meditação inspirada podia erguer-me e arremeter em direção à verdade última das coisas; e porque eu era altivo demais para me preocupar com marxismo, freudismo, dirigismo contratual, tomada de decisões ou qualquer outra porcaria dessas. ------ Eu tomarei conta da reunião hoje ----- a voz de Daiana era profunda ----- Mas confesso que ainda estou no primeiro degrau da minha compreensão sobre o mundo do dinheiro. -, concluiu ela. Na noite anterior, durante a viagem, eu havia explicado à ela que quando um poeta famoso chama os ricos para um encontro, sempre acaba parecendo obcecado por dinheiro; tudo que um poeta não deveria ser. ------ Mas, afinal de contas (acrescentei) eu também tinha cidadania americana: e que espécie de americano eu seria se fosse inocente em relação à temas como dinheiro e fast food? Horace Walpole dizia ser natural homens livres pensarem em dinheiro (.) --, então, a claridade apolínea de Delfos fez-se por um momento obscura: Nietzsche opunha ao deus Apolo o deus Dionísio, o do instinto espiritual descontrolado e orgíaco. Recostado ainda, agarrado à poltrona da recepção do hotel, eu revia todas aquelas anotações espetaculares , enquanto Daiana escolhia uma das suítes do folder preto e roxo. Os elevadores art noveau tinham portas douradas. Eu queria conversar, expressar-me, e o clima teórico do meu caderno me estimulava: ''Na Antiguidade Clássica, Delfos era conhecida como o umbigo (omphalos) da Terra''. A princípio, recusei-me a descrever detalhadamente à Daiana aquelas pessoas, homens e mulheres cruzando o mundo em jatos supersônicos; eram somente X e Y, e na inocência dela, procurava entrar com elas em acordos prévios e subconscientes, e trocar promessas com X por mero medo do desconhecido. Era como uma recepcionista ajeitando a maquiagem à entrada de alguém importante. Sob minhas ordens, ela diria sim para tudo, sem pestanejar, e assinaríamos pilhas de papel sem ler, a respeito da posse conjunta de um edifício comercial no centro de Manhattan. Shakespeare tinha razão: não havia arte nenhuma em desvendar as intenções ocultas no rosto de uma pessoa. Eram damas e cavalheiros em quem depositaríamos uma confiança absoluta e ponto final. Eu não estava exatamente disposto a ser poeta naquela noite. O Simbolismo francês, minha escola, estava ultrapassado há décadas; portanto, me limitaria a atuar como um artista realizado sendo ''real'', de volta às relações interpessoais e ao vasto mundo globalizado. Não mais o verbo de diamante contra a opaca vida real: não, contratos imobiliários e prostitutas de luxo eram coisas reais; Daiana era real; a longa tarde de passeio, e a própria Delfos, por incrível que pareça, eram absurdamente reais. A situação topográfica de Delfos num cenário prodigioso de montanhas, os tremores de terra, as exalações sulfurosas, as fontes, os deslocamentos de blocos de rochas, as tempestades frequentes sobre o Parnaso, a acústica perfeita, o vento (capaz de arrebentar a pedra, segundo Sekelianos, poeta moderno de Delfos), o mar que se descobria ao fundo das oliveiras, etc, determinaram desde a Antiguidade a criação de um centro espiritual cuja força irradiara-se implacavelmente por toda a Grécia, até os dias de hoje. Mas as personalidades bilionárias e seus ''analistas de sistemas'' estavam encantados comigo porque eu era um poeta, e não porque eu era real. Sem dúvida eram tomados de um frêmito muito particular diante de minhas cerâmicas feitas de pura linguagem. Essas pessoas tinham de fato curiosidade em conhecer gênios. Ouviram-me com satisfação naquela noite, quando desfiei a longa e encarniçada história que explicava porque eu era tão perseguido e odiado: no espaço de quatro horas, derramei sobre eles e elas uma quantidade aterradora de sujeira, espalhando escândalos aos quatro ventos e lançando metáforas poderosas nos seus ouvidos. ------ Que combinação (!) -----, Daiana elogiou-me depois, no quarto: ---- Fama, fofoca, burla, dribles desconcertantes, violência, lixo e descargas poéticas que deixavam as cabeças das pessoas inchadas (.) ------, mas não vinha a ser muito para quem já sabia que era idolatrado como um deus em Nova York e como um simpático filhote de cão encharcado de petróleo no Oriente Médio. Assim que eu começava a falar diante deles, no restaurante daquele hotel, iniciava-se para eles então a ''viagem ao Paraíso'', figurada, segundo a tradição goethiana, pela viagem em direção ao sul. Minhas oitocentas mil paginas de literatura eletrônica corrida foram mais do que suficiente para reunir aqueles que, de outra forma, permaneceriam intimamente separados, levando a todos, para além de todo sentimento pessoal, a movimentos espirituais de lenta e profunda metamorfose, semelhantes em tudo aos dos grandes místicos da humanidade. ------ Quem considera por exemplo a garganta de Pleistos (contava eu no princípio) tendo à direita o monte Kirfis e o golfo de Itéia na distância, será também tomado de um frêmito tão particular quanto o que vossas excelências experimentam na minha presença; não mais um frêmito de medo diante do desconhecido, como acontecia ao homem arcaico, mas de profunda admiração por um conjunto natural que soa milagroso e inacreditável, fortemente trabalhado pelo tempo (: aqui, senhoras e senhores, o culto de Apolo atingiu o vértice, além de contribuir em altíssimo grau para o desenvolvimento da cultura que nasce da religião ( o templo apolíneo,como sabemos, sempre foi considerado como uma universidade de seu tempo) os sacerdotes souberam fazer render a superstição popular. Instalada na trípode do santuário, movida talvez pela constante ameaça dos tremores de terra e outros fenômenos naturais, as pitonisas entravam em transe; e a seu modo, os sacerdotes da época interpretavam o oráculo ambíguo, profuso, nebuloso, influindo assim em todos os setores da vida grega. Além das notícias de Plutarco e Heródoto sobre a importância do Oráculo de Delfos, possuímos também referências de Platão em diversos tratados. Salto a enumeração fastidiosa das obras de arte existentes em Delfos, preferindo resumi-las na estátua brônzea do Auriga condutor de carros, semelhante segundo alguns autores a uma coluna, misto de força e graça, tímido-soberbo, com os olhos cor de mel, o queixo voluntarioso; e na esfinge alada de Naxos, delicada e monstruosa, durante muito tempo uma idéia fixa dos gregos (.) ------, modéstia a parte, eu era realmente belo falando, profundo e eloquente, fragrante e original, até mesmo quando me atrapalhava um pouco com o inglês; e que repertórios(!), que súbitas mudanças de estilo e de tempo. Algo em mim sempre me fazia começar timidamente; mas logo, minhas bochechas me davam ares de criança possuída, confiante, e a medida que o assunto se transformava em confidência, pedras dentro dos meus olhos estouravam em combustão e eu principiava a dizer àqueles granfinos que sabia exatamente o que maridos e esposas americanos diziam quando brigavam ----- altercações tão importantes para eles e tão cansativas para as minhas leitoras. Alguns bilionários mais velhos coçavam a cabeça e desviavam os olhos dos meus quando essas coisas começavam, contrariados; mas as damas apreciavam muito, riam. ------ Ahhhh. AMERICANOS(!), com suas idéias estúpidas sobre amor, suas monótonas tragédias domésticas; quê me importam vossos problemas, americanos?!) -----, Daiana, acuada num canto da mesa do jantar, se perguntava como é que suportavam ouvir-me. Mas eu continuava: ----- Será que o americano médio sofre de verdade? O mundo inteiro olha para os vossos rostos e se pergunta: "Não me diga que esses gordos prósperos e ignorantes estão sofrendo(!). No entanto (prosseguia) a abundância democrática traz consigo seus próprios revezes: a América sempre fôra um mal sucedido experimento de Deus. Haviam conseguido, heroicamente, curar velhas dores nacionais, mas o que (aparentemente) só tornava as dores recentes ainda mais peculiares e misteriosas. A América sempre detestou valores especiais, e sempre detestou quem representasse tais valores; sabem o que quero dizer... certo?? A velha grandeza da humanidade foi gerada na escassez. Porém, o quê (digam-me em nome de Deus!) podemos esperar, hoje em dia, da abastança americana?? Em Wagner (por exemplo), o gigante Fafner -- ou seria um dragão? --- dorme num anel mágico. Quer dizer que até hoje a América está dormindo e sonhando com justiça social e amor?? A palavra ''Revolução'' não lhes soa abjeta na boca de um velho democrata esclerosado?? Seja como for, não estamos aqui para discutir os mitos de amor adolescente trabalhado pela demagogia de um cérebro amputado (era como eu me expressava, naquele momento). No entanto , gostaria que os senhores ouvissem isto... ------, seguia martelando eu, agora a narrar no meu estilo mais propriamente original: descrevia e enfeitava, intrincadamente; encaixava o Paraíso Perdido, de Milton, falando sobre divórcios caríssimos, e John Stuart Mill, falando de algumas mulheres bonitas. Depois disso, vinha uma abertura, um espaço para confissões momentâneas; eles se apropriavam da palavra por alguns minutos e logo a devolviam a mim, apreensivos. E então eu os acusava, fulminava, gaguejava, espumava, flamejava, berrava, cruzando o universo acidentado de suas mentes como uma flecha incandescente. Fazia o implacável raio X da situação real: fraquezas, caprichos, mentiras, traições, subornos, perversões vergonhosas e, principalmente, a louca luxúria, vício maior de certos bilionários (eu citava inclusive nomes de gângsters e prostitutas de alto luxo). A VERDADE (!), e todo aquele maldito melodrama de impureza e cheiro ocre de genitálias saciadas, todos aqueles mamilos durinhos e escarlates, clitóris e apetites sem disfarce, gemidos e ejaculações! Mais tarde, tendo impressionado Daiana terrivelmente com minha irascível veemência, explicava à ela que aquelas pessoas provavelmente já tinham ouvido aquilo centenas de vezes, entre risos, mas queriam ouvir de novo, agora da boca de um gênio. --- É como se eu tivesse me tornado o pornógrafo oficial dessa gente (.) ---, arrematei, rindo. Ah, mas eu também fora grande! Simpático, espirituoso, vivaz, engenhoso, elétrico, envolvente, nobre. Estar em minha presença fazia as pessoas sentirem a intensidade psíquica da vida; eu era a extensão irada da boca de Deus, mas discutíamos serenamente também os assuntos mais elevados: o que Diotima dizia a Sócrates sobre o amor, o que Spinoza queria dizer com o ''amor dei intellectualis''. Conversar comigo era encorajador, nutriente, revelador. Porém, pouco antes de adormecermos naquela noite, Daiana pareceu perceber, quando mencionei pessoas que haviam sido minhas amigas, que aquilo podia ser unicamente questão de tempo antes que eu fosse deixado de lado. ---- Você não tem velhos amigos, K, e sim ex-amigos(.) ---, querendo dizer que frequentemente eu me tornava de fato terrível, caindo no mais extremado oposto da afabilidade sem nenhum aviso. Quando isso acontecia, era como se meus interlocutores estivessem sendo ceifados por um trem bala dentro de um túnel sem iluminação. Restava-lhes apenas ficarem colados às paredes do túnel ou deitados entre os trilhos, rezando.

K.M.

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