segunda-feira, 11 de março de 2019

PATMOS

Eu começara a ''ensaiar'' cedo e a última noite havia sido quente e produtiva: me levantei disposto e desci para tomar café ; ela veio logo depois e me encheu de bons conselhos sobre meu teatro pessoal omni-abarcante e a atitude correta diante da vida. Meu telefone tocou exatamente no meio de sua explanação mais importante, e a voz de Schindler anunciou quantias assombrosas, que me fizeram voltar a pensar em Thelma, uma cadela irracional e hostil, que eu conhecera em seu escritório. A única vez que tentei sentar-me ao seu lado, ela prontamente mudou-se para dois assentos adiante. ------ Tudo isto por semana para não fazer nada ? -----, indaguei, a voz rouca. --- Tudo bem (disse-me Schindler, satisfeito) Queremos você feliz. Esta é a idéia. ---, eu começava a odiar meu próprio teatro pessoal, os sentimentos expandidos de maneira desagradavelmente teatral, com muitos gestos já gastos, e as mesmas garras afiadas e falsas lágrimas e súplicas. ------ Mas não estou fazendo nada (questionei-o) Vou ficar doido. Me dê algo para escrever. ----- , não adiantou. ----- Você está indo bem. Preciso de você em caso de emergência, não para fazer o que qualquer um pode fazer. Tenho que ter um cérebro de apoio, alguém com talento real. Vá ao banco e divirta-se. ----- Mas deixe-me pelo menos escrever um Western para vocês, uma tele-novela, um ------ Não, ainda não. Faça o que está fazendo e deixe o resto comigo. ----, naquela altura da encenação, no meu script agora eu devia passar por Thelma sem nem ao menos olhá-la e entrar num escritório escuro. Devia ser brilhante no papel e mais nada: aprimorar frases labirínticas e desencavar jóias intelectuais e artísticas para que todos vissem como eu era gigantesco. Claro que a magia fabulosa de Rhodes também era uma ''joy for ever'', naquele momento, mas, atento transmissor, não conseguia parar de misturar meu drama intelectual ao prejuízo atual: naquele momento, eu pensava no ser humano em conflito com a paisagem, o problema interno em frente aos arabescos de luz.  e ela possuía um coração sincero, e dinamismo perceptivo em situações de alta complexidade intelectual. Nos dias de grande calor, ela punha-se de biquini sobre um colchonete de ginástica e então apareciam saudáveis tendões, braços rijos, panturrilhas e coxas laboriosas, e óculos escuros. E quando o conjunto era visto por trás, o órgão que eu adorava num contexto diverso, pequeno, fino, intrincado, carnívoro, rico em deliciosas dificuldades de acesso, salientava-se no biquini como um limbo primitivo. Depois de exercitar-se ao sol, banhava-se e sentava-se com as belas pernas metidas num manto azul tomando martíni e desejando roubar meu cigarro. Amplos espaços nos recebiam  do lado de fora, após as onze da manhã. Eu havia arremetido no terreno dos desmandos a fim de demarcar um lote da mente nacional para mim mesmo, mas esse lote se revelou intumescida e trêmula miragem. Não quis, com isso, dizer que não estava no meu perfeito juízo... chamem a polícia, ao diabo com esses clichês. Não assustei-me quando a polícia me prendeu, não fiquei desesperado, não pedi um advogado: pedi apenas para fumar um cigarro e apanhar o livro que estava lendo: O Dogma de Cristo, de Eric Fromm, publicado em Viena em 1931. Mas o que é que eu queria dizer com aquilo? Talvez algo como: Suponhamos que o poeta tenha sido imobilizado no chão pelos policiais, amarrado numa camisa-de-força ou algemado, lançado com vontade num camburão como um louco perigoso, chegando todo sujo e trancafiado com fúria. Foi então que ela perguntou-me: ------ É isso a Arte versus a América? ------, mas aquilo fora apenas o relato de um sonho, e nós não estávamos mais na América, e sim em Patmos: campo de concentração dos exilados políticos durante o domínio romano. Eu ignorava se Patmos no seu contexto atual, abrindo o encanto dum golfo sereno e a belíssima linha clássico-cubista de sua arquitetura, recordaria a todos os viajantes que um Homem de Fogo, discípulo tangente do Cristo, passou aqui prisioneiro muitos anos, que aqui escreveu o Livro da Revelação do Futuro, e morreu. Afinal (me perguntava) qual a relação entre a Luz Reveladora, sublinhando detalhes e interseções históricas ao olho-selfie do turista, e a força trágica oculta na terra grega, sempre pronta a explodir além do passado e do presente? Entretanto, a ''cristandade'' continua esnobando Patmos e sua força espiritual altamente explosiva. João de Patmos odiava com todo seu coração a César e o Império Romano. Por outro lado, queria infiltrar-se em todos os poros do poder, enxamear seus focos, multiplicá-los por todo o universo; queria um poder cosmopolita, mundial, mas não às claras, como o do Império, mas sim em cada canto e recanto, em cada rincão escuro, em cada redobra da alma coletiva. Mas poderia um poema apocalíptico nos transportar de Patmos a Nova York em poucas horas? Ou computar a distância percorrida por um tiro de rifle? Não, não poderia, não tinha tais poderes, e só existe interesse onde existe poder. E João desejava um poder último, de um Deus sem apelação que julgasse todos os demais poderes. Era uma imagem inteiramente nova do poder que o cristianismo inventava com seu Apocalipse: o sistema do Juízo. Ora, naquela ilha mais mineral do que vegetal encontraram-se de novo o espírito ''pagão'' e o cristão. Tal encontro é ilustrado por exemplo no hino Patmos, de Holderlin, alto cristianíssimo canto de um poeta sempre atraído pela Grécia Órfica, e onde se lê que ''O portador da tempestade amava a pureza do discípulo''. 
A primeira estrofe de Patmos, de Holderlin, que traduzo, vale por um poema inteiro:
Patmos
para o Conde de Homburg 
O deus   
Está próximo, e difícil de tocar.   
Mas onde há perigo,   
Um elemento salvador também cresce.   
Águias vivem na escuridão,   
E os filhos do Alpes   
Atravessam o abismo sem medo   
Em pontes ligeiramente construídas.   
Então, desde os ápices   
De Tempo estão juntos, próximos,   
E queridos amigos vivem perto,   
Crescendo fracos nas montanhas separadas—  
Então nos dê águas tranqüilas;   
Nos dê asas, e as mentes leais   
Para atravessar e retornar.  

Nah ist
Und schwer zufassen der Gott.
Wo aber Gefahr ist, wachst
Das Rettende auch.
Im Finstern wohnen
Die Adler und furchtlos gehn
Die Sohne der Alpen uber den Abgrund weg
Auf leichtgebaueten Brucken.
Drum, da gehauft sind rings
Die Gipfel der Zeit, und die Liebsten
Nah wohnen, ermattend auf
Getrenntesten Bergen,
So gib unschuldig Wasser,
O Fittige gib uns, treuesten Sinns
Hinuberzugehn und wiederzukehren.

''Holderlin viveu junto do castelo do Conde, em Bad Homburg. Ele tinha estudado teologia no seminário luterano Stift, em Tübingen, onde fez amizade com Hegel e Schelling. Em 1793, por intervenção de Johann Schiller, Hölderlin se empregou como preceptor na casa de Charlotte von Kalb, em Waltershausen, mas deixou o cargo para seguir os cursos de Fichte em Yena. “Logo depois, em grave crise depressiva, se recolheu à casa de sua mãe”.
“Premido pela necessidade, aceitou um novo emprego, por intervenção de Hegel, em casa do banqueiro Jakob Gontard, em Frankfurt, onde se apaixonou, de maneira exaltada, por Susette Gontard, esposa do patrão. É correspondido, mas a situação se torna insustentável, obrigando-o a abandonar Frankfurt e a refugiar-se em Homburg”. 
''Poeta do sagrado, descobriu na Grécia antiga a raiz da poesia, no lado dionisíaco. Hölderlin foi ignorado por Goethe mas exaltado por Nietzsche. 
''Segundo Heidegger, ele foi o "poeta da poesia", pois acreditava que "o que permanece, fundam-no os poetas".
EU DISSE.
---- Seu Thomas Hobbes de merda(!) --, protestou ela; e compreendi a referência. Queria dizer que eu só me interessava pelo poder. -- O Apocalipse (expliquei a ela) é um Eu monstruoso enxertado no Cristo; João de Patmos empenhou nisso todo seu esforço: ''Sempre títulos de poder, nunca títulos de amor. Cristo é sempre o Conquistador, o Todo-poderoso, o Destruidor, brandindo sua espada cintilante, destruidor de homens até o sangue chegar à altura dos freios dos cavalos. Jamais o Cristo salvador, jamais. O filho do homem do Apocalipse desse à terra para trazer um novo e terrível poder, maior do que qualquer Pompeu, Alexandre ou Ciro. Poder destruidor e aterrorizante... ficamos estupefactos'' (D.H. Lawrence, Apocalypse).
O Mosteiro de são João Evangelista edificado sobre uma colina onde outrora existia um altar à Ártemis, conserva na sua biblioteca preciosos documentos dos tempos bizantino, franco e turco; foi também um centro de conspiração em favor da sempre ameaçada independência política da Grécia. Os edifícios sacros da Grécia devem ser observados num contexto também sacro para seus habitantes: o céu , o mar, o campo, os animais, as árvores , a comida. Entramos então na gruta de Sant´Ana onde o apóstolo recebeu o impacto da aparição do Cristo. Certo mestre alemão, Rudolf Kassner, escreveu que '' o paganismo é o profundo vestíbulo do cristianismo'', reabrindo-nos uma perspectiva de cultura que parecia bloqueada para sempre por Nietzsche nas suas teses anti-cristãs; no Apocalipse, é interessante essa presença e a reativação de um fundo pagão desviado; escrevendo sob ditado (que hoje poderíamos dizer surrealista) , o apóstolo nos diz: ''Eu João... estive na ilha de Patmos... fui arrebatado em espírito num domingo, e ouvi por detrás de mim uma voz forte e dura como trombeta, que dizia: ------- Escreve num livro o que vês; e envia às sete igrejas que estão na Ásia: a Éfeso, a Smirna, a Pérgamo, a Tiátira, a Sardes, a Filadélfia, a Laodicéia... Vi ainda um grande trono branco onde estava sentado um Homem do qual fugiram a terra e o céu, não se achando mais lugar para eles''. Um estrato pagão, um judeu e outro cristão, é isso que marca as grandes partes do Apocalipse, com o risco de que um sedimento pagão se inflitre numa falha do estrato cristão, preenchendo a lacuna cristã (no capítulo XII, o mito pagão de um nascimento divino, com a Mãe astral e o grande dragão vermelho, vem preencher o vazio do nascimento de Cristo); essa reativação do paganismo é frequente na Bíblia, mas pode-se entender que profetas, evangelistas e o próprio São Paulo sabiam muito sobre os astros, as estrelas e os cultos pagãos, porém optaram por camuflá-los. Os judeus, por exemplo, voltam à eles sempre que precisam ''Ver'', quando a Visão recupera certa autonomia sobre a Palavra; e o homem do Apocalipse precisou do velho olho pagão, vindo a conhece-lo melhor do que ao próprio Jesus.Ora, os pagãos não são os romanos, mas antes os etruscos; nem sequer são os gregos, mas os homens da civilização do Egeu. E para assegurar em visão a queda do Império Romano, era preciso juntar, convocar e ressuscitar o Cosmo inteiro, e destruí-lo a fim de que ele mesmo arrastasse e sepultasse o Império Romano sob seus escombros. Tal é esse estranho desvio, esse estranho viés pelo qual não se ataca diretamente o inimigo: o Apocalipse precisa de uma destruição do mundo para assentar seu poder último e sua cidade celestial, e só o paganismo lhe fornece isto. Ele vai então chamar de volta o cosmo pagão para acabar com ele, para operar sua destruição alucinatória. Exatamente desta gruta em que ela e eu estávamos, com sua fenda circular assinalando a passagem do Cristo por ela, nasceu toda uma nova criação, um novo cosmo: um número infinito de textos, pinturas, gravuras, igrejas ornamentadas com motivos apocalípticos. Aqui perto também, segundo uma tradição local, o terrível apóstolo, que a oleografia oitocentista desfigurou até transforma-lo numa criatura de aparência aberrante, teria petrificado o feiticeiro Kinops. Mas a modernidade do Apocalipse não está nas catástrofes anunciadas, e sim na auto-glorificação programada, na instituição da glória da Nova Jerusalém, na instauração de um poder último quase fascista, judiciário e moral. A própria Revelação nos convence de que o mais terrível não é o Anticristo, mas essa nova cidade descida do céu , que ''não precisa nem do sol nem da lua para lhe darem claridade, habitada apenas pelos inscritos no livro da vida do Cordeiro da Guerra''.

K.M.

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