sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

La substance du Néant.

Meu anseio  por aquela espécie surreal de livre-arbítrio, no qual o sentido metafísico felizmente ainda impera, consiste em carregar sozinho a inteira e última responsabilidade por minhas ações e delas desobrigar Deus, mundo, jornais, antepassados e afetos, acaso e sociedade, enfim, não ser nada além do que ''causa e efeito'' de mim mesmo. Audácia parecida à do Barão de Munchhausen, que para salvar a si  e seu cavalo puxou-o pelas tranças do cabelo do pântano do nada, de onde sua existência só saía mais e mais vazia a cada segundo. De outra maneira eu quis saltar sobre o deserto, que inicialmente não parecia tão vasto. No meio do salto, no entanto, me dei conta de seu verdadeiro tamanho e mudei de idéia. Suspenso no ar, me virei e voltei para o lugar de onde saíra, a fim de tomar maior impulso. Mas, desta vez, o impulso prometia ser tão grande, que me tornaria tão impessoal quanto o próprio deserto, tão desolado e poderoso quanto ele. Ingenuamente, eu coisificaria causa e efeito, tal como fazem os investigadores da natureza, e assim confirmaria todas as suspeitas em torno da minha desesperança, apertando e pisando a ''causa'' até que ela ''produzisse efeitos''. Nada (pensava comigo) pode ser mais fácil para mim do que ser sábio, paciente, superior. É com extrema facilidade que destilo os óleos da indulgência e da compaixão.  Sou perfeitamente capaz de ser justo de uma forma inconcebível, absurda ; perdôo qualquer coisa. Passo por cima de tudo com meu cavalo. Por isso mesmo, me porto com austeridade comigo, cultivando, de tempos em tempos, paixões que jamais serão correspondidas, como um pequeno vício passional. Faço isso porque além de um certo limite da consciência intensificada, não existe nenhuma outra espécie de relação ''humana'' para um iniciado; trata-se de um simulacro humano de auto-superação, uma reprodução de velhos arquétipos vitoriosos que orientaram meu psico-drama místico no passado. Um divertido ascetismo extra para alguém que há muito se tornou tão vasto e glacial quanto o infinito. Tornar-se pessoal, nestas circunstâncias, me entretém com as mais inofensivas penitências. Sem razão aparentemente nenhuma, me ofereço ao sacrifício diante dos humanos como se fosse um criminoso. Como alguém que tivesse cometido algum tipo de assassinato, sem jamais tê-lo feito realmente. E suponho que a dura realidade dostoiéviskiana venha logo em meu encalço, cobrar sua conta. Para os outros, aqueles que sempre preferirão Barrabás à Cristo, é de se esperar, e de se desejar, que alguém como eu manifeste publicamente toda a devastação psicológica sobre a qual escreve Dostoiéviski. Como a pessoa pode matar e não se sentir atormentado (?) Isso faz da pessoa um monstro, certo (?) Em Crime e Castigo, Raskolnikov não mata a velha e depois se sente como se estivesse tudo bem durante os vinte anos seguintes. Um assassino a sangue-frio como Raskolnikov reflete sobre seu sangue-frio a vida inteira. Sobre o que poderia ter sido e o que de fato foi. Mas talvez eu não seja exatamente dado à esse tipo de reflexões, até porque não matei ninguém. Sou, no entanto, uma máquina de agir através das palavras. Embora o crime de Raskolnikov tenha deixado -o se remoendo por dentro durante anos a fio, eu decidi pagar meu tributo de uma forma diferente, transformando minha vida num deserto absoluto. A penitência que pago secreta um psiquismo muito eficiente em outros planos, e o modo como constantemente faço renascer minha vida transforma meus atos em contos de poder espiritual. O jeito como, ocasionalmente, abaixo a cabeça e me contenho para me conservar na linha, não é de forma alguma a mesma de Raskolnikov. Ela me transforma num acontecimento totalmente europeu, muito parecido com o Super-Homem nietzscheano, só que maior e mais real. Impossível não me tomar por um caso isolado ''qui renferme la substance du Néant''. 

K.M.

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