sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

UBERMENSCH...

Havia agora uma Esquerda militante jurando diariamente que os ricos haveriam de comer o próprio excremento; havia um cardápio de constatações neutras e uma mesa de frios números e estatísticas; e havia a Massa e a Máquina do Centro: todas as super-rodovias e planos de habitação drenando os sonhos da cidade-alta de suas derradeiras compras de beleza, a fim de produzirem dinheiro novo para os aproveitadores. A ação financeira do Centro, como de costume, era a pior de todas, pois estava instalada nas caixas-fortes de todos os bancos, em todos os blocos de concreto e misturadores de cimento, nas polícias ( nos nobres e nos trabalhadores), e era o suor secreto nos poros de todos os burocratas corruptos da cidade estrangulada pela floresta de dinheiro sujo, legalisticamente defraudada, esta selva de posturas e combinações metabólicas que lhe poluem a atmosfera, lhe envenenam as águas, despersonalizam a arquitetura e tornam os metrôs tão perigosos quanto as turmas encarceradas em... e existia algo mais para tornar a coisa ainda pior: Poe e Baudelaire propuseram-no: era a criação de um mundo de espanto diário, pródigo em formas de horror. O tecedor de pesadelos , Monstrum Artifex, invencivelmente continuava a incorrer em conjecturas atrozes, aperfeiçoando um horror (Apocalipse, IV, : 6) anunciado por um ''monstro feito de olhos''. Na verdade, cada uma das malignidades começava com uma necessidade intolerável e justa que não podia ser satisfeita, nem esquecida. O discurso do Super-Homem Nietzscheano diante do espelho. A nova paranóia da Direita desenvolvendo-se porque ela queria agora ----- ou acreditava querer ------ o antigo prospecto que prometia casas tranquilas em ruas tranquilas, alimentos saudáveis, brancas para casar, negras para cozinhar, mulatas para foder, talk shows promocionais, um ar respirável e decente nos shoppings e salas de cinema, uma vida vivida em aeroportos, hotéis e restaurantes de acordo com princípios morais imutáveis... Mas o Super-homem, por sua vez, não queria nada disso: não queria nem mesmo sair do quarto escuro em que sua mente estava imersa: o SuperHomem recordava a todos, o tempo todo, que havia criado seu próprio cânon e só podia ser medido por este ( ''Nesse plano sou mais belo que apolo '', dizia ); A Direita, por vezes canina e anti-intelectual, admitia que não era fácil apertar a mão de alguém assim, tão desdenhoso. ------ O senhor compreende ----- diziam ----- A estrutura que nos comporta é bem outra, e precisamos dela. Sem ela, não somos nada individualmente. Não somos Super-homens, como o Senhor (.) -, o esquema geral das coisas trabalhava para negar as exigências do Super-Homem e o preço disso não era baixo para ninguém: apontava para uma super-conspiração espiritual oculta que faria a violência correr solta no mundo, pondo veneno nos alimentos, desacreditando a publicidade, atormentando homens que antes atormentavam, enquanto o Super-homem desdenhava tudo que lhe punham aos pés. A Esquerda (aflita) falava imediatamente em reconstruir e recomeçar , e na primeira oportunidade obscurecia o imagina´rio de subúrbios e vizinhanças, que pulverizavam todos os princípios em estilhaços de caos e contradições ativas. Conquanto a necessidade do Centro fosse de mero poder político para dirigir a economia, provinha originalmente de um esquema ortodoxo de fidelidades à dogmas. O Super-Homem , no momento, apenas se defendia de ser o novo Edgar Allan Poe da economia, ou o segundo Kafka do STF, mas algo no barro de seu EU propendia incuravelmente ao pesadelo: algo secreto, cego e atômico. Essa discórdia incessante, essa necessidade doentia de manter o próximo debaixo de ferro, essa vontade demoníaca definiam o Super-homem. E não garanto à leitora nenhuma possibilidade de correção; nenhum mea culpa; mas eis um episódio que me ocorre enquanto estou escrevendo este rascunho: Todo o componente da Massa e da política da Máquina do Centro estava exaurindo as cidades com uma das mãos e, com a outra, alimentando uma porção de fantasias particulares, dogmáticas. Por isso, ainda havia recordações de favores ocultos e belas noites de bebedeira pelas residências oficiais, e belas recordações dos velhos tempos nas velhas bocas e velhos olhos, e a velha lenda de velhos homens que tinham sido homens de verdade ao menos em alguns momentos capitais. A Máquina Psicoterapêutica do Poder era um método que costumava capacitar velhas múmias políticas para o trabalho, pois era o que mais se aproximava de uma cultura alternativa à televisão, alternativa aos mitos de sucesso distribuídos por ela para ricos e pobres (e os pobres também ainda precisavam dela, de sua sombra, de sua opressão: precisavam de um estoque gratuito de ansiolíticos no grande vácuo anônimo da cidade, um urgente sentido de mito e sua respectiva correlação farmacológica, para uma futura liga ''Dos Exaltados e Dos Duros'', uma esperança de satisfação de alguma ânsia que a televisão despertasse para contê-los. Muitos pobres necessitavam da Máquina em diversos sentidos. A Máquina assistencialista era objeto de uma paixão criminosa, desavergonhado desespero, estupradora morte por fome e inanição, pois sabiam que perdendo-a, perderiam-se eles próprios na cidade logo depois, e ficariam vagando à deriva no vácuo até morrer, como zumbis. Por isso defendiam esse aspecto da Máquina, com unhas e dentes. Mas a Máquina já não podia continuar tomando conta deles apropriadamente, porquanto a Máquina (falida) sabia já não ter nada à oferecer nem à Esquerda nem à Direita, senão apaziguamento, conciliação, déficts, morfina... e isso equivalia a deixar que a malignidade crescesse à vista de todos, como um epidemia. Assim, a Máquina trataria de evitar falar em evolução, futuro e esperança abertamente, e em segredo procuraria crescer silenciosamente, acelerando o ritmo em que se deixava devorar pela sombra do Super-Homem: começaria demolindo em massa a antiga aparelhagem política e espremendo dinheiro do suco de seus escombros, e das jurisdições ultrajadas da União, dos Tribunais de Contas, dos clubes de padrinhos sortudos, das autarquias exorcizadas, dos convênios em vigor, dos corretores que se ajeitavam pelos cantos, até que a Máquina prometesse que, em breve, tomaria o aspecto de um Congresso mudo e obediente.

K.M.

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