sábado, 19 de janeiro de 2019

A sabedoria do Evento

Dispostos fundamentalmente na abertura para o evento (Ereignis) os futuros são homens determinados não pela técnica, mas pelo último Deus. Uma força corajosa de resistência ao silêncio abranda o coração na persistência do não querer. Para se encontrar inserido na disposição fundamental o homem deve se afastar voluntariamente do absolutismo calculador, tendo como meta alcançar um saber originário e verdadeiro, mas por outro lado inútil e sem valor aparente. O saber ligado ao evento e conseqüentemente causador do choque do ser (Seyn), para Heidegger, está absolutamente atrelado a consciência de sua história. Isto quer dizer que a partir deste âmbito histórico agregado ao saber questionador, se decide o amanhã no vigor da disposição fundamental. Entretanto, o saber histórico requerido para a melhor apreensão do evento não deve ser obtido através da constatação e descrição dos fatos, mas deve se portar como um saber ocorrido no próprio fluir da época em que os futuros devem interferir. Heidegger recupera a idéia de ocaso como um percurso em um abismo, transposto através da sabedoria do evento (Ereignis). O caminho essencial no ocaso para o futuro é tido como uma preparação ao vindouro. É na silenciosa contrição do escutar poético em que vigora a decisão para se lançar ao princípio deste percurso. .

O caminho dos futuros permite reconhecer a falta dos deuses e a ameaça constante à existência como adversidades a serem superadas pela capacidade de questionar essencial no saber do evento. Desta forma, o ser (Seyn) estaria ainda distante, pois com a chegada dos futuros, um período de adaptação é necessário para que os homens entendam a gravidade desse novo pensar. Sobre o ocaso transpassado pelos futuros, Heidegger afirma na obra Contribuições:

Los que van-al ocaso en sentido esencial son aquellos que pasan inadvertidos por lo que viene (lo venidero) y se inmolan a él como su fundamento invisible venidero, los encarecidos que incesantemente se exponen al preguntar. (HEIDEGGER, 2003b, p. 319).

Os futuros atravessam o caminho na posse da disposição fundamental e suportam o choque que um novo modo de pensar proporciona. Isso se mostra mais acentuadamente quando o homem percebe se tratar de uma intervenção onde o propósito maior é preparar o solo para a chegada do último Deus. A configuração tradicional da existência provavelmente sofrerá alterações com a chegada definitiva dos futuros entre nós e a mudança mais radical se colocará acessível ao mais puro pensamento. Esses arautos da aurora do amanhã trarão a linguagem poética novamente ao âmbito do cotidiano, assim como também junto consigo caminhará o último Deus, ainda indefinido quanto à maneira de conviver junto aos homens, mas certamente importante na conjuntura de acontecimentos previstos por Heidegger na virada do pensamento ocidental.

Os futuros atravessam o ocaso e devem sempre nutrir consigo o pensamento questionador. A intranqüilidade de não se encaixar numa sociedade viciada está essencialmente ligada à sabedoria do evento (Ereignis), responsável pela simples intimidade com as coisas, pela consciência do débito e do abandono do ser a partir da configuração presente no período da técnica moderna. A pergunta pela essência da verdade deve ser instigada ao próprio espírito daquele que deseja se preparar melhor para a meditação acerca da experiência poética como nova possibilidade de habitar nesta terra. Em Contribuições, Heidegger afirma explicitamente que a busca pelo senhorio do saber através da postura silenciosa resgata o ser do esquecimento e o recoloca nos arredores da verdade, onde a relação originária com as coisas possa fazer-se presente com maior intensidade. O silêncio privilegia a escuta, pois no novo paradigma colocado pelos futuros o fundamento e o abrigo determinar-se-ão a partir da reflexão poética. Na era da técnica, privilegia-se a informação rápida, momentânea e descartável, pois o mercado urge se renovar tendo em vista a obtenção de lucros. Na era do último Deus, privilegia-se a celebração austera, sem interesses e condizente com a verdade mais profunda e imutável tendo em vista sabedoria acerca de nós mesmos.

Obviamente é muito difícil, em uma primeira investida, pensar coerentemente em Deus, nos futuros e mesmo no advento de uma nova aurora histórica para a humanidade. Todavia, o que Heidegger pretende ao se colocar no encalço da poesia é, primeiramente, fornecer questionamentos para que se dêem outros modos de lidar com o mundo, e assim preparar o homem para o choque do ser (Seyn). A forma como a poesia se comunica com o mundo se dá sempre a partir de uma perspectiva originária e se empenha em configurar o retrato de um povo histórico. O fundamento de um povo reside na relação que têm com as coisas ao redor e, principalmente, com Deus. Toda a compreensão de um povo, a partir do olhar poético, deve pertencer historicamente a uma época como uma mensagem que se destina ao futuro. Essa mensagem será compreendida melhor quando o perigo da técnica já estiver em um patamar superior e o homem esteja compenetrado na preparação para a chegada do último Deus.

Os futuros trarão consigo a abertura para o ser (Seyn) conviver em meio à totalidade dos entes, expondo os valores da unicidade, singularidade e criatividade.

O último Deus se apresentará finalmente na simplicidade de cada coisa e na relação honesta dessas coisas com a terra. Os futuros devem estar atentos à região onde se encontra a essência da divinização, pois dela extrairão o saber que promoverá o desvio ao modo calculador, não abandonando por completo, mas construindo junto a ele uma obra onde o oculto permanecerá e a vastidão do evento (Ereignis) se fará presente como abrigo da verdade. Hoje, assim como no tempo de Heidegger, existem poucos futuros em vigor. Esses poucos carregam consigo uma espécie de senha especial que guarda os portões do amanhã. A senha é a certeza invariável da chegada do último Deus. A senha está intimamente ligada à sabedoria do evento e a disposição fundamental dos futuros. A certeza proporcionada pela posse da senha haverá de estar sempre aí, como um sinal mostrando que todas as coisas se apresentam numa divinização espacial. Os detentores da sabedoria do evento (Ereignis) estão sempre inseridos na disposição fundamental, ou seja, em todos os instantes e em todas as circunstâncias o ser (Seyn) se quebra em um mistério paradoxal e insolúvel. Após o choque, o ser (Seyn) se apresenta revelando e encobrindo uma verdade incalculável.

Os futuros ainda estão adormecidos para a maior parte dos homens, hoje ainda mais escravizados pela técnica devido à internet. Porém, a consonância se põe à frente dos mais ousados investigadores. Para estes, a solidez do mais íntimo temor se transforma num espaço singular onde reverbera o ser (Seyn) e também se mantém retido o Deus. O ser-aí é o ente que proporciona o movimento de todas as referências e somente ele habita junto à linguagem num mundo repleto de significados. É sempre a partir do homem que um período histórico pode degringolar e um novo surgir, pois nas mãos dele está o próprio destino. O destino é um envio que se põe em marcha quando a terra se encontra em perigo. O envio é um recado celestial que penetra na escuta daqueles mais familiarizados com a relação entre terra e céu. Os receptores do envio devem utilizar-se da linguagem e criar, a partir dela, o retrato de seu povo para só assim propagar a sabedoria do evento (Ereignis). O destino dos futuros é conduzir a humanidade rumo ao choque do ser (Seyn). No insólito espaço rasgado pelo poeta se encontra a essência celestial de Deus bem no interior do ente: radicalmente o sentido contemplativo arraigado pela poesia e também da sabedoria ancestral adquirida pelos futuros e perpetuada através de uma obra que não visa obter nenhum resultado prático. O sentido interno do ente é a senha para se confirmar a chegada do último Deus. Por trás de toda a terrível armação que nos impede o pensamento, devemos descobrir a simplicidade essencial de tudo ao nosso redor e o mundo se apresentará novamente na claridade do evento (Ereignis). 

K.M.

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