sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Esse jogo que me propuseram é divertido (e jogam conosco)

Ainda que a meditação de Heidegger mantenha-se reflexivamente distante do dizer poético (mas não de modo a desprender-se dele no abrigo de uma metalinguagem), o empenho da ''topologia do ser '', colocando a coisa no lugar da Natureza, o Dasein no lugar do homem, a errância no lugar da história, a linguagem como discurso e a terra como mundo, leva o pensamento aos limites do dizível e do pensável. Nesses limites, que o conceito não contorna, e diante dos quais cessam o conhecimento objetivo e a especulação filosófica, a Hermenêutica heideggeriana expande-se no espraiamento metafórico da palavra, de que depende o dizer essencial.

Heidegger refere-se à metáfora, numa passagem de rara ambiguidade, em O Princípio do Fundamento (Der Satz vom Grund), ao explanar a natureza do pensamento como escuta e visão, que incidem numa transposição figurativa do ouvir e do ver sensíveis: ''A noção e 'transposição' da metáfora repousa na distinção ou mesmo na separação do sensível e do não-sensível como dois domínios auto-subsistentes. E conclui afirmando que ''o metafórico só existe no interior da Metafísica''. Como Heidegger experimenta pensar o ser pela distinção platônica do sensível e do supra-sensível, deveria também desvencilhar-se da metáfora; contudo esta aparente objeção não alcança a metáfora em si, mas a interferência da distinção entre sentido próprio e sentido figurado, que, remontando a Aristóteles, tem servido de base para a apreciação das obras literárias, e mesmo para a concepção da linguagem. Tal como a preservou a interpretação corrente da Poética e da Retórica, a metáfora é a transferência de significação, que transgride um primeiro sentido correspondente à verdade do juízo ou da proposição. Porém o dizer essencial não se recorta em blocos verbais separados, em estruturas diferentes e opostas de linguagem. A metáfora está no foco de articulação dos significados, como princípio de todo discurso. 

Podemos relacionar a metáfora com o ato próprio da linguagem (o seu trabalho, ou, para empregarmos a expressão de Humboldt, a sua ''enérgeia'') e conceber esse ato na modalidade de JOGO.

JOGO  é um dos vocábulos frequentes no idioma de Heidegger. A conotação desse termo acha-se implícita, quando não aparece explicitamente, nos momentos cruciais da Analítica e do pensar meditativo. Encontramos o termo JOGO, de modo particular , na descrição da verdade como obra de arte, bem como na descrição do Quadripartite. E igualmente na meditação sobre o FUNDAMENTO, iniciada no opúsculo de 1929, DA ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO. Como abismo (sem fundo) , que tem na liberdade ou na transcendência a sua razão, o fundamento obrigaria o pensamento a saltar num aparente vazio total, que, entretanto, lhe proporciona ''a correspondência com o SER COMO SER''. Mediante esse salto, ingressaríamos no JOGO do SER em sua VERDADE, antecipado pela sua nadificação. O SER inclina-se para o NADA, que nos foi apresentado, em sua presença ausente, como um acontecimento sobrevindo ao próprio Dasein , também refulgindo no jogo do seu VELAMENTO ILUMINADOR. A produção dos ÊXTASES no CONTINUUM da temporalidade, dirigido intencionalmente pela consciência, merece a conotação de processo livre, autônomo e gratuito da palavra JOGO (conceito-limite fundamental ----

é um Spiel ---- um JOGO, captado , à medida que se produz, nos deslocamentos das significações verbais, na polissemia das palavras. A metáfora dá o lance desse JOGO; ela é a POIÉSIS verbal, que projeta o discurso nas línguas, a fala na linguagem, culminando na atividade agonal, no exercício lúdico arriscado com as palavras, que se chama poesia.

''A ESSÊNCIA do SER é o próprio JOGO'' (Spiel), aproximando-nos da essencialização concebendo-a enquanto ''espaço-de-jogo-do-tempo'' (Zeit-Spiel-Raum). O ''espaço-de - jogo-do-tempo''' abre-se na linguagem poética, envolvendo o pensamento, uma vez que é a essência da linguagem da qual o pensamento depende, ''que joga conosco''. Acontecendo sem o caráter de ocorrência empírica ou de estrutura factual, no ACONTECIMENTO-APROPRIADOR assinalado pela palavra EREIGNIS ( o EVENTO: não por acaso relacionada pelo próprio Heidegger à palavras como TAO (vocábulo tão intraduzível quanto ''EREIGNIS'', vindo a ser explicado como a mútua apropriação do HOMEM e do SER; Heidegger liga paranomasicamente os significados de ''eignen (prestar-se à) e de zueignen (apropriar-se). ''Tão intraduzível quanto o Lógos grego ou o Tao chinês ---- ''transapropriar-se do SER como PRESENÇA (Anwesenheit) e do tempo como âmbito do ABERTO (Offenen) ---- a verdade da ESSÊNCIA é, como dispensação do SER, jogo mútuo do SER e da LINGUAGEM -----

conceito vazado pela imagem de LUZ, antes de receber o nome de CLAREIRA

mas só quando na poesia
é alto é régio o pensamento
(dichtend Denken)

K.M.

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