quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Só observo...

Nos anos 1990 já era possível ler-se num documento do BIRD sobre as ''market  friendly reforms '' : a privatização e a liquidação das atividades do setor público que concorrem deslealmente com o privado , as eliminações das restrições à concorrência, a eliminação das funções de controle e licenciamento e o desmantelamento das agências públicas que desempenham essas funções '' (Working Papers , World Bank  ,1990) . 

Com a palavra ''governabilidade'', no entanto , em lugar daquela nitidez burocrática dos documentos, reina uma certa confusão , ou  talvez uma imprecisão com base objetiva.  A princípio a governabilidade parece dependente das ''reformas estruturais'' e da antecipação dos planos para a infra-estrutura, mas depois vemos que , na verdade, a governabilidade é mais uma condição essencial para seu sucesso. E é a ambiguidade da crítica liberal que introduza confusão estratégica ; uma confusão que começa vagamente nos meios teóricos e suas adjacências midiáticas e logo vai construindo um novo senso-comum alienado . Há mais de cinquenta anos que a palavra ''governabilidade'' frequenta o jargão dos clientelistas liberais sem que eles jamais tenham se colocado de acordo sobre seu conteúdo prático. O tema da governabilidade surgiu durante a ''crise democrática'' dos países industrializados , quando a idéia de desenvolvimento político havia deixado de ser um signo necessariamente positivo e o foco central das preocupações práticas passou  do problema da ''construção democrática '' para o da ''estabilidade política'' , ou mais precisamente  da '' governabilidade'' : a capacidade prática de atender certas demandas, ou então de suprimi-las de vez . A definição teórica e prática de governabilidade foi sendo redefinida por décadas.  Sua principal alteração de rota foi a obra New Political Economy , que nasce do neoliberalismo econômico de Hayek e a corrente de pensamento político que estréia com a Teoria dos Jogos , passa pela Teoria da Ação Racional e culmina na escola da ''Escolha Pública'' . Houve a reação do pensamento neo-conservador , mas a''nova economia política'' , o neoliberalismo , ofereceu o alicerce teórico à sua estrutura atual .Em apertada síntese , o Economic Approach to Politics , ao aprofundar e sistematizar a metáfora de Schumpeter sobre política enquanto mercado e o ''cálculo do interesse individual '' como fundamento do comportamento dos eleitores, da burocracia e da ''classe política'' , acabou por reduzir o Estado , os governos e os sistemas políticos a uma soma de indivíduos que, basicamente, se orientam pelas exigências do mercado através do acesso seletivo aos recursos das políticas públicas. Graças a essa revolução neoliberal que o funcionamento da democracia de massas tornou-se o responsável direto pela ingovernabilidade, levando a classe política a refugiar-se numa vaga busca pela ''racionalidade da ação'' . Na verdade , os valores sociais classificados pelos economistas como preferenciais ou ''gostos '' dados são extremamente importantes para a sociedade, suas transformações afetam radicalmente os comportamentos das instituições políticas e econômicas. É essa versão eclética da governabilidade que  nascerá no fim dos anos 1990 na agenda do Banco Mundial e de outras ''instituições multilaterais'', já na forma de ''governance ou good governance ''. Uma pequena novidade conceitual : aumento do rigor no detalhamento do que seria um governo confiável do ponto de vista da sociedade e da comunidade internacional . O ponto de que parte essa preocupação é bem elucidativo : ''Para muitos credores do sistema financeiro, a efetividade de suas operações de ajuste e investimento é impedida por fatores que contribuem para uma gestão pouco eficiente ''. Aqui se encontra o nó que amarra a mídia liberal à oposição e ao Partido Democrata. Tais fatores, para eles , incluem ''instituições pouco sólidas '', a falta de uma  ''adequada estrutura legal '', a ''fragilidade dos sistemas'', bem como ''políticas '', consideradas por eles, ''incertas e variáveis'' , numa linguagem puramente financeira para amarrar o governo em torno de um consenso liberal. É assim que organismos operativos definem e limitam a governabilidade de forma instrumental , sem avançar muito do ponto de vista estratégico; deve-se a tais organismos e instituições um papel decisivo na construção do consenso liberal de que a mídia se vale indistintamente para defender a herança de um projeto que fracassou . 

K.M.

Nenhum comentário:

Postar um comentário