quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Confiança na (Gelassenheit) Serenidade

Filosofia e não-filosofia, o pensar abre caminho entre palavras e faz das palavras o seu próprio caminho, num discurso retrospectivo e prospectivo ao mesmo tempo, em que o impensado da origem é o que falta pensar e que deve ser pensado. Entregue  à linguagem, a prática  meditativa de Heidegger é a expressão desse pensar. Ela se define como a preparação expectante de um pensamento futuro na confiança da serenidade ((Gelassenheit) . 

O pensamento nada pode intentar antes que o ser nele se pronuncie. Nesse sentido, a prática da meditação, relanceando o pensamento que virá na compreensão do que já foi pensado, comporta uma perspectiva escatológica. E se é escatológico, é também soteriológico, uma vez que somente o apelo do ser, ouvido na linguagem, pode nos salvar. Apesar de tantas cautelas em sentido contrário, Heidegger reintroduz no Lógos, tal é o poder que confere à linguagem, ao fim sacralizada, o Verbo encarnado da Teologia Cristã. O retorno ao ''país natal'' é o mito da volta após o longo exílio, substrato de uma expectativa esperançosa, mas já saneada da do aceno religioso, em que se neutralizam todas as superstições cristãs. 

O pensamento preparatório vagueia em meio aos signos errantes do pensamento por vir, no qual, reiterada a origem, resgatado o esquecimento subjacente à Metafísica, a VIRAGEM, essência própria da história, se produz como o advento de uma transformação do homem, destinado à habitar poeticamente a terra. À topologia do ser, escatológica em seu horizonte, essa destinação poética acrescenta o espírito da UTOPIA, mas desembaraçado da impulso moderno de assenhoreamento da realidade. A serenidade nada espera, mas a UTOPIA é o alvo da expectativa serena,. 

Vista sob esse ângulo, a poesia no sentido estrito da palavra, o cantar, corresponde ao discurso da serenidade.  E, muito embora seja o poeta, na visão do Zaratustra de Nietzsche,  o ''mais vaidoso dos pavões '', ele só canta realmente quando se liberta da vontade da vontade, só quando, entregue à fala da linguagem, pode dizer, renunciando à parolagem (Gerede), a LIVRE AMPLIDÃO (Freie Weite) das coisas e do mundo, em que se anula a distinção entre o verdadeiro e o falso. 

Quem de fato alcança a serenidade, já antes alcançou, necessariamente, aquela entrega da liberdade, o deixar-ser de que Heidegger trata em Da Essência da Verdade. A serenidade tem, nesse abandono, o seu primeiro momento de luz. O segundo momento, uma espécie de ''não-saber'' iluminado, muito afim à Docta Ignorantia de Nicolás de Cusa, contenta-se com a simplicidade do MESMO, com o despojamento de um pensamento que se limita a apontar o ser em toda e qualquer coisa ou situação, e que faz de toda e qualquer situação uma indicação do ser. Mas em tais circunstâncias o cantar poético já recobre inteiramente o pensar, desaparecendo o abismo que os separa. 

Post Scriptum

Também o pensamento do filósofo alemão, ao entrar em diálogo com a poesia em suas últimas obras, se faz incrivelmente poético. Heidegger alcançou a fala da linguagem ao poetizá-la, tornando o caminho do poeta e do pensador indiscerníveis.

K.M.

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