terça-feira, 1 de janeiro de 2019

''Le goût est fait de mille dégoûts ''

Certamente meus desejos viciosos inexistentes não eram o verdadeiro motor do meu processo criativo.  Mas aquela grande escolha de mulheres diferentes a cada dia, tanto as novas aprendizes que eu me encarregaria de corromper, quanto aquelas senhoras ricas que eu vivia prostituindo,  ajudavam a fazer com que da minha obra-prima de confusão e mau gosto pudéssemos considerar mais de perto a figura do autêntico homem de gosto refinado ;  a situação criada nos ajudava a perceber, com alguma surpresa , que seu aparecimento entre nós não correspondia, como alguns críticos ingênuos poderiam esperar , a uma mais ampla RECEPTIVIDADE do espírito em relação à arte ou a um interesse maior por esta , e que a mudança radical de paradigmas que se verificava na minha obra não se resolvia simplesmente em uma purificação da sensibilidade do espectador ou do crítico , mas na astúcia intelectual do homem de gosto intelectual REALMENTE refinado que envolvia e punha em questão o próprio estatuto da obra de arte em geral, ao estudar a minha com a dedicação necessária. Minha construção poética miraculosa, inexplicável, inextinguível e inexaurível permitia a tais homens provarem-se a si mesmos, conduzirem seus cérebros ao limite de toda condição humana, uma vez que ela reconquistava e ressuscitava a euforia e o entusiasmo de seus sistemas nervosos ----- levavam-nos a considerarem a ARTE de um ponto de vista puramente virtuoso, espiritual, poderoso e sobre-humano, isento de toda concessão humana. Mas seria um engano considerar esse fenômeno novo , ou inédito, na história da arte  universal. O Renascimento, por exemplo, também havia visto pontífices e grandes senhores darem tal lugar privilegiado à arte em suas vidas a ponto de deixarem de lado as ocupações ordinárias de governo e a execução comum de seus projetos políticos ; mas se lhes tivesse sido dito que o espírito deles era dotado de um órgão especial que era incumbido ----- com exclusão de qualquer outra faculdade da mente e de qualquer outro interesse sensual ----- da identificação e da compreensão da obra de arte  em questão  , eles teriam provavelmente achado essa idéia tão grotesca quanto se tivesse sido afirmado que o homem respira não porque seu corpo precisa disso,  mas apenas para satisfazer  seus pulmões. No entanto,  é exatamente  uma idéia desse tipo que começa a se difundir de modo cada vez mais decisivo na sociedade culta da Europa seiscentista ; a própria origem da palavra parecia sugerir que,como havia um ''gosto '' mais ou menos são e refinado , da mesma forma poderia existir  uma ARTE MAIOR e uma arte menor, uma MELHOR e outra pior ;; e na desenvoltura com a qual o autor de um dos numerosos tratados que surgiram sobre o tema na época podia afirmar que '' o vocábulo BOM GOSTO, que vem exatamente daqueles que nos alimentos discerne de modo são o BOM SABOR do sabor  medíocre , corre nesses tempos pela boca de alguns e em matéria de letras humanas a atribuição de tais  valores a si mesmo '', já está contida em germe na idéia que Valéry iria exprimir jocosamente quase três séculos depois, ao escrever que ''le goût est fait de mille dégoûts '' .  Em apertada síntese : o processo que leva à identificação desse misterioso órgão receptivo da obra  de arte MAIOR poderia ser comparado ao fechamento de três quartos de uma objetiva fotográfica frente a um objeto excessivamente luminoso ; e, se pensamos no ofuscante florescimento artístico dos dois séculos precedentes, esse parcial fechamento pode até mesmo aparecer como uma precaução necessária contra um poder tão devastador em termos paradigmáticos, que muitos o associaram ao poder do Demônio.

K.M.

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