sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

VISÕES E AUDIÇÕES

A linguagem não é auto-suficiente, não tem fim em si mesma. Não há intransitividade  da linguagem literária, como pensou Foucault em As Palavras e As Coisas. Uma segunda característica da literatura é que sua linguagem sempre tem relação com um ''DE-FORA'', não pode ser separada de um elemento não-linguístico, mesmo que haja entre os dois uma relação de representação. Por mais indispensáveis que sejam os procedimentos da linguagem, eles são apenas a condição, e devem ''se articular com um processo vital capaz de produzir VISÕES e AUDIÇÕES'' (G.Deleuze).

O procedimento leva a linguagem a um limite, mas nem por isso o ultrapassa. Ele devasta as designações, as significações, as traduções, mas para que ''por fim a linguagem afronte, do outro lado de seu limite, as figuras de uma VIDA DESCONHECIDA e de um SABER ESOTÉRICO'' (G. Deleuze). Tem acesso às novas figuras quem sabe ultrapassar  tal limite.

Os procedimentos literários levam a linguagem à um limite não no sentido de uma limitação da forma, de margem ou de fronteira, mas de GRAU DE POTÊNCIA, como aquilo a partir do qual ela desenvolve sua potência e vai até o fim do que ela pode, atinge sua ENÉSIMA POTÊNCIA, seu limiar de intensidade. Trata-se de um limite agramatical (intensivo) que devasta as designações e as significações, permitindo que a linguagem deixe de ser representativa e adquira a potência de dizer o que é indizível para a linguagem empírica e habitual.

''Quando escrevo só existe aquilo que escrevo. Aquilo que sinto como diferente, ou que não sou capaz de dizer, são idéias ou um verbo roubado, e que destruirei para substituir por outra coisa''
Antonin Artaud (Rodez, 1946)

Portanto, quando se cria uma LÍNGUA ORIGINAL, desequilibrada, ''adâmica'', ''madruguenta'', '' edênica '' (como nos sugere o poeta Manoel de Barros) , a linguagem habitual, cotidiana, sofre uma reviravolta, é levada à um limite assintático, pela criação de novas possibilidades gramaticais, ou, mais propriamente, AGRAMATICAIS que fazem parte da criação de novos possíveis.

''Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas''
(Manoel de Barros)

A criação de uma língua estrangeira dentro na própria língua faz com que ela adquira um estado de tensão em direção à alguma coisa que não é sintática e nem mesmo diz respeito à linguagem: um DE-FORA da linguagem.

Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -
(Manoel de Barros)

O DE-FORA da linguagem, que não se reduz à exterioridade ou interioridade, aparece aqui como VIDA e como SABER. O procedimento da linguagem é uma condição, a condição genética da relação entre VIDA e SABER (da criação de um saber sobre a vida: mas não qualquer tido de saber, mas de um SABER ESOTÉRICO, que não é dado à qualquer um, que escapa do senso comum, do reconhecimento, criando novas possibilidades vitais, novas formas de experiência, não raro intraduzíveis, incomunicáveis e, até mesmo, incofessáveis.

Seria tentador comparar o que nos diz Artaud com o que nos diz Holderlin, Mallarmé, etc: que a inspiração é antes de tudo esse ponto puro onde ela falta. Mas devemos resistir à essa tentação de afirmações generalizantes. Cada grande poeta diz o mesmo, e , no entanto, não é o mesmo, É O ÚNICO, assim o sentimos. Artaud tem sua parte própria. O que ele nos diz é de um intensidade que não deveríamos suportar.

Enfiar o idioma nos mosquitos?
(Manoel de Barros)

Não é qualquer tipo de vida, mas uma VIDA DESCONHECIDA, com suas figuras intensivas não representáveis. Uma vida que não pode ser reconhecida (pois o reconhecimento implica o privilégio da identidade: e na Clareira onde impera o Desconhecido, nossa identidade e nossa língua nada são...

Discurso ingênuo este que iniciamos, ao nos dirigir à Manoel de Barros e Antonin Artaud.

CLAREIRA de uma VIDA DESCONHECIDA, inapreensível pelo uso empírico da linguagem, unicamente acessível por meio de um SABER ESOTÉRICO. Vida constituída por forças informais: intensidade, singularidade, virtualidade.

 A literatura diz respeito à intensidade, é uma CAPTURA DE FORÇAS.

''A poesia está ligada a essa impossibilidade de pensar que é o pensamento, isso é a verdade que não pode produzir-se, pois ela se aparta sempre, e nos obriga a senti-la sob o ponto em que poderíamos te-la sentido verdadeiramente''
(A.Artaud)

Mas não nos cabe ficarmos contentes em ver o destino de Artaud como o de uma mera individualidade , admirável ou sublime, que tendo desejado com demasiada força algo demasiado grande, obrigou-se a chegar a um ponto em que aquilo tudo se espatifou. Sua sorte só pertence à ele mesmo, mas ele mesmo pertence à tudo o que expressou e descobriu, não como algo próprio, mas como VERDADE e AFIRMAÇÃO da ESSÊNCIA POÉTICA...  Não é seu destino o que ele decide, mas o DESTINO POÈTICO, o sentido da VERDADE o que se dá como tarefa por realizar... e esse movimento não é o seu próprio movimento, é a REALIZAÇÃO mesma do VERDADEIRO, que, de um certo ponto de vista, e apesar dele, exige de sua razão pessoal que se converta em pura transparência impessoal, de onde já não há regresso.

Bom, se a sintaxe dessa linguagem literária ''é o conjunto de desvios necessários criados a cada vez para revelar a VIDA DESCONHECIDA nas coisas , a vida a que ela dá acesso é a capacidade de resistir das forças que tenta capturar, a potência inorgânica, a pressão cósmica (vida que não é individual nem pessoal, mas SINGULAR, formada de singularidades impessoais, pré-individuais, VISÕES e AUDIÇÕES.

Há quem aceite a palavra a ponto de osso,
de oco; ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida,
na sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro,
envergá-las pro chão, corrompê-las, -
até que padeçam de mim e me sujem de branco. 
(Manoel de Barros)

A linguagem desequilibrada que leva a um DE-FORA produz VISÕES e AUDIÇÕES. Uma língua original não é cavada (creusée) na própria língua sem que toda a linguagem oscile, seja levada à um limite, a um avesso constituindo VISÕES e AUDIÇÕES que não são mais de nenhuma língua. Como em Samuel Beckett, que teria suportado cada vez menos as palavras porque sabia da dificuldade de ''esburacar'' a superfície da linguagem para VER e OUVIR o que se esconde por trás delas. 

Queria a palavra sem alamares, sem
chatilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramentos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
Eu queria ficar mais porcaria nas palavras.
Eu não queria colher nenhum pendão com elas.
Queria ser apenas relativo de águas.
Queria ser admirado pelos pássaros.
Eu queria sempre a palavra no áspero dela.
(Manoel de Barros)

P.S:.

Uma linguagem levada ao extremo, elevada à potência do indizível, torna possíveis visões e audições libertas do empírico, visões e audições superiores, puras, capazes de ver o invisível e ouvir o inaudível, tornando o escritor um vidente (voyant) e um ouvinte (entendant), alguém que vê e ouve algo grande demais, forte demais, excessivo.

K.M.

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