terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Como nasce um demônio ?

Peço desculpas à leitora, prometendo não repetir isso (afinal, boas leitoras não lêem ficção para aguentarem as desculpas de um autor). Direi apenas que , tendo lido os melhores e os piores romances durante muitos anos ---- o que faz parte, lembro a leitora, da boa educação de qualquer demônio ----, sei agora que nem mesmo uma leitora leal pode se manter fiel à um autor disposto a deixar sua narrativa em troca de um expedição sem nenhuma relação aparente com o tema principal . Mas um outro e bem mais extravagante fenômeno se apresente hoje à nós : enquanto as obras de arte se tornaram inteligíveis a nós apenas através do confronto com sua sombra , para avaliar a beleza dos objetos naturais (como o próprio Kant já havia intuído ) não tínhamos até agora nenhuma necessidade medí-los com seu negativo . Assim, certamente não ocorreu a ninguém perguntar até então se um temporal ou um terremoto tinham sido mais o u menos bem-sucedidos ou se uma flor era mais ou menos original que outras, porque por trás de uma produção natural nosso juízo estético não distinguia a estranheza de um princípio formal, ao passo que tal pergunta se apresentava a nós diante de um quadro, um romance ou qualquer outra obra do gênio.  Mas a obra de arte contemporânea, de fato , e de modo cada vez mais frequente , nos apresenta produções  frente às quais não mais é possível recorrer ao tradicional mecanismo do juízo estético, e para as quais a dupla antagonista Arte - Sombra da Arte parece ser inadequada. Diante de um ''ready-made '', por exemplo , no qual a estranheza do princípio criativo-formal foi substituída pelo estranhamento do objeto não artístico que é imerso à força na esfera da arte , o juízo crítico se confronta, por assim dizer , imediatamente consigo mesmo, ou para ser mais preciso ,com a própria imagem invertida : o que ele deve reconduzir à Sombra da Arte, de fato ,já é por si mesmo Sombra da Arte e sua operação se exaure, assim , em um mera verificação de identidade. A arte contemporânea, nas suas mais recentes tendências , levou esse processo ainda mais longe e acabou por realizar aquele supremo ''reciprocal ready-made '' em que pensava Marcel Duchamp quando sugeriu usar um Rembrandt como mesa de passar roupa. Identificando cada vez mais a obra de arte com um produto não artístico, e tomando consciência da própria Sombra , a Arte acolhe , assim, imediatamente em si a própria negação  e, superando a distância que a separava da atividade crítica,torna-se ,ela mesma, o LOGOS da ARTE e sua SOMBRA . Embora eu possa ter uma boa noção do que está acontecendo com os clientes de nossa arte, mesmo quando tenho que confiar em agentes argentinos medíocres, nossas obras podem perder um pouco de sua tonicidade. Não obstante, como já prometi à leitora ,  essa narrativa não sofrerá por conta disto de forma decisiva . Muito antes de qualquer contratempo atual , eu já havia conseguido fazer com que um bom número de outros auxiliares atingissem um nível razoável de percepção. E digo isso com orgulho de Mestre . Eles tinham muito pouco a oferecer quando chegaram a mim pela primeira vez, mas não perderei tempo explicando picuinhas de treinamento e recrutamento, pois isso nos levaria àquela questão (tão romantizada hoje ) de como ''nasce um demônio ''. É o K. Maligno , o Grandioso K. , Mestre dos Mestres , atento aos seres humanos superiores que possam estar dispostos a trabalhar em nossa empreitada, ou , como é mais comum , eles chegam a nós como uma ninhada de rejeitados pela sociedade, inflamados por um precioso sentimento de rejeição, que prepara e aduba o recipiente espiritual para a ''virada'' . Mas o modo como tais acordos e seus processos alquímicos são negociados e manipulados pelo Grande K. estão muito além do conhecimento humano e não vale a pena tentar elucidá-los. Direi apenas que, procurando alcançar um 'plano de igualdade''com o Grande K. , todo candidato é levado a aceitar uma grande quantidade de exsudação ---- todas aquelas possibilidades humanas perdidas são , então, convertidas em potência espiritual e represadas por meio de técnicas meditativa s ocultas. Ao longo dos séculos, o Grande K. certamente teve de desembolsar uma parte muito grande de seus recursos com o Tempo necessário para treinar o material humano perturbado que chegava até nós. Algo análogo à dificuldade de montar uma orquestra sinfônica a partir de candidatos que ainda precisam aprender a tocar um instrumento . Mas não aprofundarei a questão além do necessário. É provável que assim como existem institutos para a restauração de obras de arte , chegaremos em breve a criar institutos para a restauração de tais auxiliares. A incapacidade de alguns auxiliares menores de se inserirem em nossa paisagem de trabalho sem a deturparem é um problema, mas não muito relevante. O desejo de purificá-la depois dessas inserções equivocadas é parte do próprio castigo e não são senão os dois lados de uma mesma moeda.  

K.M.

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