quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O gesto como cristal de memória histórica

A CRÍTICA é apenas a recondução da obra à esfera do gesto --- -esfera situada além de toda psicologia e, em certo sentido, além de toda interpretação . Ela não desemboca nem em uma história literária nem em um teoria dos gêneros, mas antes em um palco no qual , como no teatro de Oklahoma ou no Gran Teatro del Mundo, de Calderón (a quem é dedicado o último trabalho crítico de Kommerell, os Beitrage zu einem deutschen Calderón ) as obras, entregues a seu gesto supremo , como criaturas imersas na luz de um momento bíblico revelatório, sobrevive à ruína de seu invólucro formal e de seu significado conceitual. Acontece-lhes o mesmo que às figuras da Commedia dell´arte italiana, que tanto agradava a Kommerell: Arlequim, Pantaleão, Colombina e o Capitão se emanciparam eternamente entre realidade e virtualidade, , vida e arte , singularidade e generalidade ---- impossível ser mais preciso. No esboço no qual A CRÍTICA substitui a história literária, a Recherche ou a Comédia deixam de ser esse texto que o c´ritico só pode indagar para entregá-lo, intacto e inalterável, à tradição : elas são antes o GESTO que, nesse texto admirável, exibe apenas um gigantesco vazio de memória, apenas o GAG destinado a dissimular uma incurável falha da palavra.


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Nas artes da linguagem ,o conceito de criação liga-se mais diretamente ao conceito de personagem ou persona . Mesmo quando o gênero se relaciona à fantasias surrealistas, essa representação nos convence de sua substância vital e do peso existencial de cada personagem. Há um peso quase tangível, uma perfeição orgânica nas ''personae '' que se encontram entre entre os personagens de Dante ou nas ordens celestiais de Milton. Os enigmas cognitivos e a dinâmica misteriosa do método narrativo inspirado que gera a força vital da personagem fictícia nos impressionam com sua evidência. Ulisses tomou forma pela primeira vez na voz de um rapsodo ; sua substância narrativa original era o AR VIBRANTE e o OUVIDO HUMANO ---- MAS O ULISSES de James Joyce surgiu primeiramente como uma sequência de signos alfabéticos num pedaço de papel : ''Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou : ----- Introibo ad altare Dei. '' Considerados materialmente, o homem de Ítaca e Leopold Bloom não são nada mais que um código de signos orais e escritos, uma combinação de símbolos, um arranjo de unidades léxico-gramaticais distribuídas ao longo de um texto de ondas sonoras . Emma Bovary é a resultante de uma quantidade determinada de tinta espalhada numa quantidade determinada de papel. Entretanto, a absoluta impertinência de tal definição é inversamente proporcional ao choque do ser que sua descrição tenta situar e tomar para si.


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''Em S. Gimignano feri as mãos nos espinhos de uma roseira do jardim de George, onde despontavam em vários pontos flores extremamente belas ''. O livro a que Walter Benjamin se refere criticamente nessa carta ao amigo Gershom Scholem, de 27 de julho de 1929, é Der Dichter als Fuhrer in der deutschen Klassik, a obra-prima de Kommerell, escrito aos 26 anos. A primeira edição é de 1929 e é ela que tenho aqui comigo. O costume tipográfico de Bondi, o editor do cenáculo de George ----- ela traz como selo a suástica (a cruz unciforme e não simplesmente na forma maiúscula da letra grega gamma , como a que poucos depois iria tornar-se o símbolo da Alemanha hitlerista ) que assinalava os ''Werke der Wissenschaft aus dem Kreise der Battler fur die Kunst (aí tinham saído, entre outros, os ensaios de Gundolf sobre Goethe e George e o livro de Bertram sobre Nietzsche e Herrschaft und Dienst, de Wolters , que tinha sido o mestre de Kommerell em Marburgo.

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Nietzsche é o ponto em que , na cultura européia, essa tensão polar para a supressão dos gestos, por um lado, e para sua transfiguração, por outro, alcança seu cume. Só como um gesto em que potência e ato, natureza e maneira, contingencia e necessidade se tornaram indistinguíveis (e unicamente como teatro ) é inteligível o pensamento do Eterno Retorno. ASSIM FALOU ZARATUSTRA e o balé de uma humanidade que perdeu seus gestos. E quando a época se deu conta disso, então (tarde demais !) começou a tentativa precipitada de recuperar ''in extremis '' os gestos perdidos. O romance de Proust, Joyce, e outros ; Pascoli, Rilke, ; e por fim até o cinema mudo traçam o círculo mágico em que a humanidade procurou pela última vez evocar o que estava a lhe escapar das mãos de uma vez por todas. Durante os mesmos anos, Aby Warburg empreendeu as investigações que só a miopia de uma história da arte psicologizante pôde definir como ''ciência da imagem '', quando na verdade elas estavam centradas no gesto como cristal de memória histórica, sua tendência para se ''cristalizar '' em destino e a corajosa tentativa dos artistas de libertá-los através da polarização dinâmica.

K.M.

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